Difícil libertação da teologia
Os grandes temas dos teólogos malditos – democracia interna, injustiça social, sexualidade, discriminação – têm de voltar a ser postos na mesa agora. Sem isso, é duvidoso que a Igreja possa continuar a ter pretensões de ser o testemunho vivo de Cristo no mundo em movimento.
Na vida como na morte, João Paulo II (JPII) foi um espetáculo midiático que revolucionou a imagem da Igreja no mundo católico e não católico. Agora que o espetáculo terminou, é tempo de reflectir sobre o legado do papa e os desafios com que a Igreja Católica (IC) se confronta.
Quando JPII iniciou o seu pontificado, a IC debatia-se com três problemas. A questão da modernidade: como interiorizar os valores da modernidade como a liberdade, os direitos humanos e a democracia. A questão ecumênica: quais as possibilidades e os limites do diálogo com outras religiões. A questão social: como articular evangelização com promoção humana em sociedades onde as desigualdades sociais não cessavam de aumentar. Estas questões tinham estado no centro do Concílio Vaticano II (1962-65) e tinham dominado os debates teológicos subseqüentes entre aqueles para quem o Vaticano II tinha ido longe demais e pensavam ser necessário desactivar o seu impulso reformista (os conservadores) e aqueles para quem o Vaticano II tinha de ser prosseguido, até porque não tinha ido tão longe quanto devia (os progressistas).
A eleição de JPII significou a vitória dos conservadores. A questão da modernidade foi tratada de modo contraditório. Em nível externo, os valores da modernidade foram abraçados como pedras basilares da luta anticomunista. Modernidade tornou-se sinónimo de capitalismo e, pela primeira vez em sua história recente, a IC identificou a sua mensagem com a de um sistema econômico concreto (encíclica Centesimus Annus). Esta posição selou a aliança de JPII com Reagan e Thatcher, parceiros na revolução conservadora dos anos oitenta. Em nível interno, a questão da modernidade foi suprimida: democracia e liberdade são para vigorar na sociedade, não na Igreja. Esta, para ser fiel à sua missão, deve continuar a ser uma monarquia absoluta, centrada no papa e na Cúria, e todos os desvios devem ser punidos.
O povo de Deus só existe na comunhão com a hierarquia e, por isso, não tem voz nem voto para além dela. Todo o impulso democratizante pós-conciliar foi, assim, neutralizado: exacerbou-se o centralismo, com o esvaziamento do Sínodo dos Bispos; dezenas de religiosos e teólogos foram suspensos, silenciados, censurados, por ousarem abordar questões proibidas: sacerdócio das mulheres, celibato, uso de contraceptivos, aborto, culto mariano, infalibilidade do papa, novas fronteiras da biologia.
Os jesuítas, entre quem soprava forte o vento da renovação, foram fustigados (substituição do Superior Geral, proibição da Congregação Geral de 1981). Pelo contrário, à Opus Dei – conhecida pelo seu conservadorismo teológico e disciplina rígida, e por defender a confessionalidade das instituições temporais – foi confiada a tecnologia institucional do restauracionismo, até ser convertida em prelatura pessoal do papa, com o que passou a estar subtraída ao controle dos bispos locais.
A contradição entre o tratamento interno e externo dos valores da modernidade passou despercebida do grande público pela maestria com que o papa reduziu a abertura da Igreja à democratização da sua imagem mediática. E o mesmo se passou com a questão econômica. Devido à recusa de JPII de qualquer abertura dogmática ou teológica, o diálogo inter-religioso ficou-se pelos espectáculos dos encontros ecumênicos. O mesmo se passou com a questão social, sendo que aqui a virulência conservadora de JPII atingiu o paroxismo.
Tratou-se de uma repressão brutal da teologia da libertação. Esta corrente teológica, assente na opção pelos pobres – “se Deus é Pai tem por missão tirar os seus filhos da miséria” – ganhava terreno na América Latina, continente onde vivem metade dos católicos do mundo, e traduziu-se num novo catolicismo popular que envolvia clérigos e leigos na luta social e política contra a injustiça social. É hoje sabido que JPII se serviu de informações da CIA – sua aliada na luta contra o comunismo – para acusar bispos e padres de subversão marxista, suspendendo-os ou forçando-os a resignar.
Agora que terminou o espectáculo, a Igreja confronta-se com as mesmas questões de 1979 e está em piores condições para lhes dar uma resposta positiva. A Igreja não se deixará iludir pela adesão dos jovens a JPII. É certo que o adoravam, mas estariam provavelmente tão dispostos a seguir na prática os seus ensinamentos conservadores como os ensinamentos revolucionários de Che Guevara, colado ao peito das suas t-shirts. Muita da energia pós-conciliar para libertar a teologia perdeu-se. A verdade é que os grandes temas dos teólogos malditos – democracia interna, injustiça social, sexualidade, discriminação – têm de voltar a ser postos na mesa. Sem isso, é duvidoso que a IC possa continuar a ter pretensões de ser o testemunho vivo de Cristo no mundo em movimento.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo
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