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René Queiroz

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segunda-feira, julho 19, 2010

Politica Pós-Ética

Muitos pontos poderiam ser considerados numa análise crítica dos anos da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva: um realinhamento do sistema partidário (com a bipolarização nacional entre PT e PSDB, os demais partidos representando satélites desse movimento), a ascensão aos estratos inferiores da classe média de um largo contingente de brasileiros que durante décadas viveram em condições de pobreza, a projeção inaudita do Brasil no cenário internacional (a partir do protagonismo do presidente e de ações pouco afeitas à nossa tradicional postura de perfil baixo), a retomada de níveis satisfatórios de crescimento econômico etc.
A chegada do ex-líder sindical à Presidência da República, em 2002, foi o ápice, no Brasil, do longo processo de “circulação de elites”, segundo a concepção do economista e sociólogo italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). No seu dizer, a circulação de elites é um lento fenômeno de transformação dos grupos superiores de uma sociedade, refletindo o conjunto de suas mudanças. Por esse processo, em vez de rupturas revolucionárias – que ocorreriam em decorrência da incapacidade das velhas elites de atualizar-se mediante a absorção dos elementos emergentes –, o que se verifica é a mescla entre os novos e os velhos setores dirigentes. Assim, pela absorção paulatina dos indivíduos mais notáveis (os líderes) das camadas sociais subalternas, as antigas elites são capazes de perpetuar-se em chave lampedusiana, ou seja, “mudando para que nada mude”.
Circulação de elites no Brasil de Lula
Uma forma de encarar essa atualização conservadora é supor que de fato nada mudou, tendo-se apenas cooptado os líderes das classes subalternas de maneira que as mantenha em sua posição de mansa inferioridade. Em tal perspectiva, essa incorporação dos antes excluídos seria o preço que as classes dominantes pagariam para manter-se por cima, sem de fato ceder nada de relevante. O curioso é que Pareto, ele mesmo um conservador, reconhecia na incorporação dos novos elementos uma condição necessária ao revigoramento da classe dominante. Esta, ao mesmo tempo em que absorve os oriundos dos setores emergentes (a antiga não elite), livra-se de seus membros mais degenerados. Trata-se, assim, de um processo de reciclagem por meio do qual permanecem apenas aqueles membros da velha elite capazes de adaptar-se aos novos tempos. Para esses, e apenas para eles, o que “nada muda” é a sua condição de componentes da elite dominante, embora mudem seus companheiros de viagem – alguns chegam, outros caem pelo caminho – e, como consequência, muda também o rumo a ser seguido.
É em virtude desse último aspecto da mudança que se pode afirmar que a transformação promovida pela atualização conservadora da circulação de elites não é tão irrelevante quanto poderia parecer à primeira vista. O exemplo clássico pensado por Pareto é a Inglaterra, que promoveu a circulação de elites mediante a mescla entre a burguesia ascendente e uma aristocracia que optou pelo próprio aburguesamento. Não apenas os nobres britânicos passaram a conviver com outro grupo social, o qual anteriormente rejeitavam, mas também assumiram muito de seu modo de ser – tendo sido a recíproca inteiramente verdadeira. Os novos caminhos a serem seguidos, contudo, foram os ditados pelo grupo ascendente, rumo a um poderoso capitalismo. Por isso mesmo, é tão notável que a Grã-Bretanha tenha conjuminado a síntese entre a economia capitalista mais avançada do planeta e a preservação mais efetiva das tradições nobiliárquicas – um cenário muito diverso do estabelecido na França, onde a resistência da nobreza à emergência burguesa levou o país ao cadafalso da Revolução; ali, as elites não circularam.
A lenta e relativamente tranquila transição social e política brasileira, na medida em que possibilitou que mesmo os segmentos politicamente mais radicais fossem paulatinamente incorporados à disputa do poder nacional, facilitou que também experimentássemos a nossa circulação de elites. Um dos reflexos mais visíveis da mistura de classes no cume do Estado é a heterogeneidade sociopolítica da coalizão de governo: convivem antigos militantes da esquerda clandestina, antigos apoiadores do regime militar, políticos direitistas tradicionais, sindicalistas da geração do final dos anos 1970 e começo dos 1980, acadêmicos, empresários e lideranças de movimentos sociais. O que pode parecer à primeira vista mera inconsistência ideológica é, na verdade, a face mais aparente do processo de mescla sociopolítica do qual Lula é a liderança mais notável.
O elemento digno de nota do fenômeno histórico da liderança de Lula decorre de duas características, ambas convergindo na política democrática. Em primeiro lugar, está sua capacidade de chefiar a heterogênea coalizão resultante do processo de circulação de elites, conferindo-lhe coesão política. Por meio do voto, mas também mediante o sucesso de suas ações de governo na obtenção da aprovação popular, o líder político proveniente dos setores subalternos obtém a legitimidade necessária para congregar setores díspares que, num passado nem tão distante, se mostravam incapazes de coabitar. Em segundo lugar, está o fato de que, num país como o Brasil, por decênios figurando entre os mais desiguais do planeta, a chegada às chefias de Estado e governo de uma liderança política originada dos estratos sociais mais baixos é, por si só, bastante significativa.
Não casualmente essa mesma liderança promoveu seu ingresso na cena política nacional a partir de uma experiência pessoal de ascensão social: Lula saiu da condição de pau de arara para ingressar, como trabalhador formal, no setor industrial mais desenvolvido do Centro-Sul do país; algum tempo depois se converteu justamente na liderança mítica desse mesmo setor avançado, vocalizando as demandas de uma parcela da população que portava, ao mesmo tempo, a modernidade econômica e a subalternidade política e social. A consequência prática imediata (porém não inevitável) dessa atuação foi a estruturação de uma agremiação partidária que, entrando na cena político-eleitoral, abriu espaço para o ingresso dos emergentes no ambiente governamental e representativo. A partir desse momento, num país que se democratizava, seria muito difícil negar-lhes legitimidade, caso se mostrassem bem-sucedidos; foi a política democrática que abriu espaço para o ingresso, no âmbito estatal, das lideranças oriundas do processo de modernização social. Noutras palavras, foi a consolidação da democracia que permitiu a concretização da circulação de elites.
Quanto às consequências políticas concretas, esse processo de circulação acarretou uma inflexão das políticas governamentais e do discurso presidencial na direção dos setores subalternos mediante políticas de renda, de caráter tanto distributivo (como o Bolsa Família) como redistributivo (como o aumento real do salário mínimo). Tais políticas, associadas à estabilidade monetária e à retomada do crescimento econômico, com o consequente aumento do emprego formal, também impactaram positivamente a renda dos setores mais pobres. Isso contribuiu para inverter a base de sustentação político-eleitoral de Lula (ainda que não do PT), alavancando muito fortemente a popularidade do governo e do presidente (assim como sua votação) entre os cidadãos de (cada vez menos) baixa renda. Desse modo, se até 2002 Lula e o PT eram mais fortemente apoiados pelos trabalhadores sindicalizados e pelas classes médias escolarizadas, a partir de 2006, embora o partido tivesse mantido sua base tradicional, o presidente seguiu rumo aos setores sempre mais marginalizados. Desse modo, a direita tradicional, que já carecia de um representante dotado de densidade eleitoral nas disputas nacionais, viu-se definitivamente deslocada da possibilidade de construir autonomamente um projeto próprio de poder no plano federal. Isso é o que talvez explique como o velho PDS (hoje PP), herdeiro da Arena do regime militar, outrora ideológico, se converteu num partido de adesão fisiológico, prestando-se até mesmo a dar sustentação a um governo liderado pela principal agremiação de esquerda do país. Fechou-se assim o círculo da transformação de nossas elites governantes.
A crise moral do PT e a “política pós-ética”
Embora seja fácil compreender a guinada do eleitorado mais pobre rumo a Lula em função de seus ganhos econômicos, não é esse mesmo fator que explica a debandada de um grande contingente das classes médias. Apesar de existirem os discursos de viés mais claramente reacionário, como os que tacham de “assistencialista” qualquer política de distribuição de renda (apelidando de “bolsa-esmola” uma política enaltecida até mesmo pelos técnicos economicamente ortodoxos do Banco Mundial), o fator determinante para o afastamento dos setores médios foi a crise moral vivida pelo PT – sobretudo a partir do escândalo do chamado “mensalão”. Aquele que outrora figurara como o “partido da ética na política”, apresentando-se ao eleitorado como o “grilo falante” do país, viu-se enredado num escândalo para o qual a melhor explicação encontrada foi afirmar que nada mais fizera do que agir da mesma forma que todos os demais. Ora, mas era exatamente aí que residia o problema: por sua reputação – demoradamente construída – de algoz moral da nação, o PT não poderia permitir-se agir como os demais. Ao fazer isso, despencou vertiginosamente do altíssimo pedestal que havia erigido para si mesmo.
A revelação de adesão aos piores costumes nacionais, feita pela boca do próprio Lula, contribuiu para o desencantamento moral da política brasileira, desnudada aos cidadãos principalmente pela prestimosa e sardônica verve de Roberto Jefferson. Mas, se tais traços eram realmente tão característicos da política nacional, só poderia mesmo ser ilusório o espaço que, num certo momento, pareceu abrir-se à oposição: o da “ética na política”. Tal senda, como se poderia esperar, rapidamente esvaiu com o surgimento de outros mensalões, que solaparam um a um os principais partidos nacionais que ainda gozavam de algum crédito e capacidade de atuar como protagonistas no plano nacional – o PSDB e o PFL (já em sua surrada roupa nova, de DEM).
Desse modo, não sobrou muito espaço para mistificações éticas construídas em torno da busca de um “partido dos puros”, e a política nacional foi reduzida a suas devidas (e mais realistas) proporções: um âmbito da vida social no qual a distinção entre os atores relevantes não se dá entre os “éticos” e os “não éticos”, mas sim entre os que defendem políticas de tipo diverso ou simplesmente disputam o poder de Estado. Nessa hora, diante da perturbadora desaparição das referências morais, os que mais atavicamente se punham contra ou a favor de seus antigos grupos de referência logo encontraram subterfúgios retóricos para justificar a manutenção das posições políticas: postaram-se contra o “neoliberalismo” (esse que, no Brasil, foi sem nunca ter sido) e contra o “aparelhismo” (aquele que só existe quando é feito pelos outros). Mas esses biombos são mais facilmente transponíveis do que as velhas ilusões éticas.
Pode-se dizer que nos prestaram um favor os sucessivos escândalos da era Lula (tanto os que atingiram petistas como os que respingaram em seus opositores): guindaram-nos a uma política pós-ética, bem menos ingênua do que aquela que muitos (sobretudo eleitores petistas) acalentaram durante muito tempo. Nesse novo cenário, as preferências políticas podem se apresentar de forma mais clara (como o que de fato são) e talvez até sobre um espaço para que esquerda e direita voltem a se mostrar de forma nítida – mesmo sem estarem hoje tão distantes uma da outra, como já estiveram no passado.

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