Nem Capitalismo, nem Socialismo!!!
Apesar dos abalos continuados no Iêmen e no pequeno Bahrein, o epicentro do terremoto revolucionário agora está na Líbia. Depois de derrubar ditaduras na Tunísia e no Egito, países fronteiriços a oeste e leste, a terceira peça do dominó parece ser mesmo o estado “socialista e popular de massas”, comandado por Muammar al-Gaddafi há 41 anos.
O desdobramento da revolução árabe contesta narrativas apressadas. Alguns analistas vêem como fator causador do movimento a aliança entre as elites dirigentes e o bloco EUA-Israel. Culpam o pacto neoliberal em vigor há três décadas, entre governos servis e interesses do capital internacional. As pessoas revoltaram-se contra os regimes tunisiano e egípcio porque perceberam não passar de instrumentos a serviço do mercado global e suas usinas de desigualdade e injustiça. A insatisfação das massas diante do capitalismo e do americanismo contrastava com a dócil subserviência dos dirigentes. Esse contraste acabou por minar a legitimidade dos ditadores Zine Ben Ali e Hosni Mubarak, que sucumbiram aos primeiros fogos.
Daí a expectativa desses analistas, que a revolução tivesse por progressão solapar os governos mais pró-ocidente da Arábia Saudita, da Argélia, do Marrocos. Mas não esperavam, — pelo menos não agora e com essa fúria, — a Líbia.
Embora um dos maiores países do continente, a população líbia se espreme numa delgada faixa de praias, palmeiras e figueiras, entre o Mediterrâneo e a imensidão do sertão saariano. Conta 6,4 milhões de cidadãos, pouco mais da metade da vizinha Tunísia, cuja área é 11 vezes menor. A capital Trípoli, no oeste do país, tem o porte de uma metrópole média como Porto Alegre. Benghazi, a segunda cidade e pólo da região leste, ombreia com a litorânea Santos.
Apesar de os líbios se originarem, na maioria, de etnias não-árabes, como a berbere, podem ser considerados um povo culturalmente árabe. 80% têm como primeiro idioma o árabe e 97% confessam o islamismo sunita.
A Líbia ocupa o 53º posto no ranking de IDH (2010), entre o Uruguai (51º) e o México (56º), melhor que o Brasil (73º), e muito à frente da Tunísia (84º) e o Egito (105º). Sua receita vem das reservas de petróleo no deserto. A Líbia responde pela 17ª produção mundial (2008), um pouco menos que Iraque, Brasil e Venezuela. Muito, levando em conta a pequena população para distribuir os dividendos.
Desde 1969, vige na Líbia um estado socialista. Depois de um dos mais insólitos golpes de estado da história, o então capitão Muammar al-Gaddafi, com apenas 27 anos, assumiu o poder. Extinguiu a monarquia, instituiu comitês municipais e o Congresso Geral do Povo, expurgou o fundamentalismo islâmico, fez reformas de base, comandou o desenvolvimento de um país que, até então, era uma colcha de elementos tribais e coloniais. Na Líbia popular-socialista, os trabalhadores são chamados de “parceiros” do estado, e não funcionários.
Gaddafi sintetizou a sua doutrina, uma mistura de democracia direta, igualitarismo e economia planejada, no Livro Verde. Espécie de manual de uso para a política líbia, foi publicado em 1975, 11 anos depois do mais célebre Pequeno Livro Vermelho, de Mao.
O organismo estatal de comitês e assembléias converge, como um funil, na liderança carismática de Gaddafi. Um autocrata nos moldes clássicos: sábio, paternal, soberano, que espalha cartazes gigantes nas ruas planas e seus edifícios com terraços ajardinados. Outorgando a dogmática do Livro Verde e manejando o mito do inimigo externo (“o imperialismo”), o regime bloqueou a formação de grupos opositores, sustando qualquer canal para o dissenso.
Com a repressão, e diferentemente do Egito e da Tunísia, não se organizaram movimentos de matiz religioso. Tampouco grupos de esquerda, haja vista que o próprio estado monopoliza esse espectro ideológico. A dialética foi usada, portanto, para sedimentar o monólogo do poder: ou se é socialista junto do regime, ou se é pró-americano e pró-Israel, logo, inimigo do povo.
Na política externa, Gaddafi construiu a reputação com um virulento discurso antiamericano e pró-Palestina. Alinhou-se ao socialismo real da URSS e aos aiatolás do Irã. Patrocinou o IRA, o ETA e a Fatah de Abu Nidal, pródiga em atentados aeronáuticos. Gaddafi apoiou Abu Nidal, na linha da rejeição da existência do estado de Israel. Apoiou-o também a título de “retaliação”, ante os bombardeios norte-americanos a Trípoli e Benghazi, determinados por Ronald Reagan, em 1986 (bombas atingiram sua casa, matando a filha do ditador, de 15 meses).
Nas últimas décadas, as mudanças no modo de produção capitalista diminuíram os lucros da indústria do petróleo, relativamente à geração global de riquezas. A incapacidade de multiplicar novas dinâmicas produtivas e disseminar renda moldou uma geração inteira de jovens precarizados. Hoje, 50% da população têm menos de 25 anos e a desocupação produtiva da juventude é vasta. Assim, por um lado, a renda per capita líbia está na 56ª posição no mundo; e por outro, 30% de sua população vivem abaixo da “linha da pobreza”, segundo a ONU. Agrava a situação a desigualdade regional no eixo oeste-leste. Enquanto Trípoli aglutina a elite econômica, ligada à família de Gaddafi e ao creme da burocracia estatal, em Benghazi se amplia um bolsão de pobreza.
A nova conjuntura forçou Gaddafi a mudar de estratégia. Nos últimos 10 anos, deixou de ser o cachorro louco para assumir o status de pop star. Espalhafatoso e anedótico, encheu-se de grifes e faz-se rodear por beldades: o protótipo do “ditador pós-moderno”. É sintomática a sua intimidade com o premiê italiano Silvio Berlusconi.
Na década de 2000, Gaddafi fez as pazes com a Europa e os EUA, anunciou a desistência de fabricar armas nucleares, expulsou os militantes ligados a Abu Nidal, indenizou as vítimas dos atentados da Fatah na década de 1980, recebeu a visita de Condelezza Rice, aderiu ao slogan da “guerra ao terror”, discursou na ONU, pôs o filho Saif al-Gaddafi pra estudar filosofia política em Londres, onde obteve seu doutorado, e personificou nele um projeto de abertura política (que, todavia, nunca foi além da promessa).
Tudo isso rendeu ao ditador a admissão no club imperial. Caíram as sanções da ONU. Grandes empresas passaram a operar em solo líbio, inclusive multinacionais com sede no Brasil: Petrobrás, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez. Agora, todas pagam caro pela aposta num regime antidemocrático.
Gaddafi tornou-se mais um representante do socialismo do século 21. Déspota ilustrado que, se por um lado fazia o jogo do neoliberalismo, por outro reforçava o eixo “contra-hegemônico”, junto de Irã, Venezuela, Cuba e, com alguma licença poética, o Brasil (cuja política externa sumamente ambígua aproveitou ao máximo as tensões para fazer bons negócios e abrir caminho às empresas nativas).
Mas então veio 2011, ano da revolução árabe, e os líbios se contagiaram do ímpeto de mudança. Começando pelos pobres mais excluídos do leste, com foco na cidade de Benghazi, em duas semanas o tumulto se alastrou por todo o país, reunindo tribos tuaregues, jovens precários, pequenos grupos religiosos, trabalhadores e desempregados.
O estado líbio tenta, desesperadamente, interromper as redes e mídias que precipitaram a revolução. Derrubou a internet e a telefonia celular, proibiu a cobertura pela imprensa, embaralhou eletronicamente os sinais de transmissão. Nada disso surtiu efeito, e o tumulto só se aprofundou nos últimos dias.
Defrontado com uma nova verdade, de que o Livro Verde nada fala, o ditador mostrou a face mais antidemocrática. O discurso socialista unitário expôs a sua crueza: uma ditadura burocrática, um capitalismo de estado, um consenso fechado e autoritário, surdo à autoorganização popular e às demandas por trabalho livre e partilha da renda.
No Egito, no auge dos protestos, o exército não interveio, escusando-se que não poderia investir contra o próprio povo. Na república “popular” da Líbia, distintamente, esse discurso é impossível, porque o povo é o estado. Nessa operação paradoxal, uma multidão revoltada se torna inimiga do povo. Logo, as forças armadas devem reprimi-la com todos os meios.
Como Gaddafi reage?
Impõe a paz cartaginesa, ultima ratio do estado. Usa os petrodólares para contratar mercenários do Níger, do Sudão, da Serra Leoa, e monta grupos de extermínio. Daí a ordem dos bombardeios contra civis em Benghazi. A história dá voltas: eis atavismo dos bombardeios ordenados por Reagan em 1986, contra Trípoli. Recapitula ainda a repressão fascista contra líbios pelo marechal-do-ar e governador colonial Ítalo Balbo, na década de 1930. A Itália de Mussolini também usava a força aérea para conter o movimento de resistência popular (dica: o filme O Leão do Deserto, de 1981 , sobre a guerrilha anticolonial líbia, com Anthony Quinn no papel de Omar Mukhtar).
Enquanto isso, o filho e sucessor Saif Gaddafi, supostamente responsável pela Glasnost, aparece na televisão estatal em tom de confrontação irrestrita e sacrificial, “até o último homem”. Estudou em centros acadêmicos de excelência para vociferar discursos à maneira de Hitler? A transmissão do pronunciamento foi recepcionada às sapatadas, enquanto monumentos do Livro Verde eram despedaçados pela fúria dos insurgentes.
Como muitos servidores, civis ou fardados, simplesmente não compram esse discurso simplório do poder, a deserção vem em massa. Embaixadores demitem-se, guardas de fronteira abandonam os postos, unidades militares amotinam-se, pilotos desertam levando consigo as aeronaves. O sistema colapsa.
Os acontecimentos na Líbia mostram como a revolução árabe corre em diagonal pela dicotomia imperialismo x anti-imperialismo. Por mais que a ditadura tenha se aproximado da ordem imperial, ainda era pedra no sapato do establishment. Não deixou de ser considerado um garoto-problema, no nível de Ahmadinejad e Chávez.
Se as revoltas embutissem um nacionalismo pan-árabe, antiamericano ou antissemita, não faria sentido derrubar o último herdeiro do nasserismo, propugnador de um estado forte para lutar contra a opressão imperialista. Pelo menos, não antes de varrer a monarquia absolutista saudita, até agora incólume face à onda revolucionária.
O contágio tão premente da Líbia, terceira ditadura escorraçada pelos cabelos, mostra que suas causas vão muito além da dualidade capitalismo x socialismo, mercado x estado. As “ditaduras de mercado” foram demolidas tanto quanto a “ditadura de estado”. Em ambos os casos, uns poucos beneficiados exploravam os muitos, na mesma medida em que a participação política era sistematicamente bloqueada. O essencial, o mecanismo de exclusão, a desmobilização política, funcionava de um jeito ou de outro.
Com a revolução, outra vez o dique se rompeu e o medo mudou de lado, extravasando um novo mundo, desejante de compartilhamento e produtividade. A proliferação de afetos e desejos é intensiva. Ou seja, efetua-se não apenas por contiguidade (juntar-se a certo discurso ou grupo preexistentes), mas numa mutação interna de percepção, numa dinâmica de autovalorização (criar a sua verdade, formar o seu grupo).
A força da revolução também está em sua imprevisibilidade. Dinâmicas intensivas podem produzir novos focos em lugares distantes. Regimes até pouco tempo firmes como rocha ruíram como castelos de cartas. O ímpeto multitudinário ameaça contagiar países antidemocráticos do norte ao sul da África, do Magreb à Europa Mediterrânea, do Irã teocrático à China socialista.
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