POR QUE A GUERRA NO IRAQUE NÃO É JUSTA
O tema da guerra justa (justum bellum) foi abordado por diversos pensadores medievais e clássicos como S. Tomás de Aquino e Hugo Grotius, mas já o encontramos em várias passagens da Bíblia. Trata-se de formular uma argumentação moral com o intuito de justificar a guerra, sobretudo numa situação de defesa do povo de Deus ou dentro do plano divino para a humanidade, onde os horrores e sofrimentos de uma dada situação bélica se justificam à luz de um bem maior ou da paz a serem conquistados num futuro imediato. A guerra seria, neste caso, concebida como uma espécie de mal necessário. As regras que governam a justiça da guerra (jus ad bellum) devem ser, portanto, diferenciadas daquelas que governam uma conduta justa e correta na guerra (jus in bello), como as encontramos hoje na Convenção de Genebra. O grande filósofo americano John Rawls retomou este tema no século XX, na sua tentativa de estender uma teoria da justiça às relações internacionais. Em seu livro O Direito dos Povos (The Law of Peoples, 1999), Rawls postula uma Sociedade dos Povos com o intuito preciso de julgar os objetivos e limites da guerra justa, regulamentar a conduta recíproca e assegurar a coexistência pacífica dos povos. Os povos são atores na Sociedade dos Povos assim como os cidadãos são os atores na sociedade nacional, com características institucionais, culturais e morais que os distinguem de Estados e nações, ao mesmo tempo em que determinam suas afinidades comuns e uma identidade coletiva. É estabelecida uma importante distinção entre direitos humanos básicos --estendidos a todos os povos-- e os direitos de cada cidadão de uma democracia constitucional liberal. Rawls considera cinco tipos diferentes de sociedades nacionais, a saber: os povos liberais razoáveis (aqueles que aderem, numa maior ou menor proporção, aos princípios do Estado democrático de direito); os povos decentes (povos não-liberais que não negam os direitos humanos, mas os reconhecem e os protegem); Estados fora da lei (regimes que se recusam a aquiescer a um Direito dos Povos razoável, recorrendo à guerra e ao terrorismo para promover seus interesses não-razoáveis); sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis; os absolutismos benevolentes (povos que honram os direitos humanos mas negam aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas). Rawls propõe, então, oito princípios de direito internacional: (1) os povos são livres e independentes, e sua liberdade e independência devem ser respeitadas mutuamente; (2) os povos devem observar tratados e compromissos; (3) os povos são iguais e são partes em acordos que obrigam; (4) os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção; (5) os povos têm o direito de autodefesa, único motivo legítimo para a guerra justa; (6) os povos devem honrar o direitos humanos; (7) os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra; (8) os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis. Segundo Rawls, o que é importante para o Direito dos Povos é a justiça e a estabilidade de sociedades liberais e decentes. Ora, segundo tais critérios, os EUA não estariam justificados em seu ataque ao Iraque, na medida em que não agem segundo regras universalizáveis e não recorrem aos meios reconhecidos por outros povos razoáveis, através da Organização das Nações Unidas, para combater a tirania e o terrorismo. Não nos parece nada razoável, portanto, postular hoje uma pax americana que, assim como a pax romana há dois milênios, carece de fundamentos normativos pela própria imposição violenta de interesses econômicos e geopolíticos particulares. Rawls sempre foi, de resto, implacável nas suas críticas à política externa americana, desde o uso de bombas atômicas contra a população civil de Hiroshima e Nagasaki até a intervenção desastrosa contra regimes democráticos, como o de Allende, por interesses econômicos e ideológicos de "segurança nacional". Rawls também não hesitou em vincular o Holocausto nazista ao anti-semitismo cristão para mostrar que o problema das guerras de intolerância, reproduzido na Irlanda do Norte e no conflito palestino-israelense, continua sendo o maior desafio para a normatividade ético-política moderna, a saber, como diferentes doutrinas abrangentes (religiosas, morais, ideológicas), incompatíveis entre si, podem conviver pacificamente de forma a viabilizar a sociabilidade? Os ideais da paz perpétua advogada por Saint-Pierre, Rousseau e Kant no século XVIII foram resgatados por Rawls numa "utopia realista" que, embora nos pareça hoje um tanto remota, continua sendo uma esperança razoável para todas as nações que se unem em torno de seus interesses vitais, começando pela própria sobrevivência e coexistência pacífica.
Nythamar de Oliveira, professor de filosofia política na PUCRS.
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