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René Queiroz

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quarta-feira, julho 27, 2005

Quando o inimigo dorme ao lado

O desembarque de militares dos EUA na Tríplice Fronteira —área estratégica pela presença de Itaipu e do Aqüífero Guarani— é a consolidação de um sonho que vem desde os atentados de 11/9. Apesar das negativas, fato pode consolidar a permanência definitiva dos militares norte-americanos no Paraguai
A América do Sul vive nos últimos anos um período de atividade permanente dos movimentos sociais. Em alguns momentos, a ação dos movimentos sociais tem ocorrido de forma mais intensa. Em outros, mais atenuada. Sem as amarras da repressão de ditaduras, e por viver democracias (no conceito liberal), o povo tem ido às ruas cobrar mudanças. Por não fazê-las, alguns presidentes foram depostos.
Desde 2001, três presidentes eleitos pelo voto foram afastados —sem contar, nos casos de Argentina e Bolívia, seus sucessores imediatos. O primeiro foi o argentino Fernando De la Rúa. Depois, o boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada. Por último, o equatoriano Lucio Gutiérrez.
Desde a década de 80, a América do Sul vem sendo submetida ao modelo neoliberal. Hoje, não tem capacidade de retomar o desenvolvimento, recuperar seu atraso tecnológico, avançar no processo democrático e diminuir os problemas sociais.
É justamente isso que o povo, após eleger alguns governantes de características de centro-esquerda —o brasileiro Lula, o venezuelano Chávez e o uruguaio Tabaré— ou progressistas —o argentino Kirchner e o paraguaio Frutos— tem cobrado pelas ruas da América.
São estes governantes que procuram, pela primeira vez nos últimos 30 anos, com determinada independência e soberania, a construção de uma política de integração da América do Sul, através da chamada "Comunidade Sul Americana de Nações". E é justamente a isso que se opõem os EUA.
O movimento social está em franca ascensão na América do Sul. Está presente não apenas na deposição de presidentes, mas também na construção de alternativas econômicas e políticas. Forçam governantes a tomar posições que contrariam os interesses norte-americanos, como é o caso da Bolívia em relação ao petróleo e gás, do Uruguai com a questão da água e inclusive no Paraguai, onde há movimentos de rua contra privatizações.
Historicamente, Brasil e Paraguai viveram, e por que não dizer, ainda vivem conflitos diplomáticos. Temos problemas sociais na fronteira entre Cidade de Leste e Foz do Iguaçu. E é comum, pelo menos do lado de lá, a acusação de que a culpa é do Brasil.
No ano passado, tramitou no Congresso do Paraguai um projeto de lei que estabelecia o confisco das terras de brasileiros. Mais recentemente, como forma de inviabilizar um dos projetos de construção do Mercosul, que trata da constituição de um Parlamento do bloco, o Paraguai começou a exigir que o número de parlamentares por país fosse o mesmo, e que qualquer decisão tomada, no futuro Parlamento, fosse por consenso.
Nesta conjuntura e nesse processo conflitivo, os Estados Unidos buscam fazer acordos bilaterais, comerciais ou não, como é o caso com México e os países da América Central. Além da questão comercial, esses acordos avançam em questões como legislação trabalhista, propriedade intelectual, meio ambiente, recursos naturais e energéticos, saúde e educação.
A Colômbia e o Equador são considerados países-chave para a manutenção da hegemonia norte-americana na região. Mas, com a queda de Lúcio Gutiérrez e a sombra política cada vez maior de Chávez na região, o futuro, neste caso, resta indefinido.
Mesmo antes da queda de Gutiérrez, os Estados Unidos, em julho de 2004, por ocasião da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Fort Lauderdale, propuseram que os países que "se afastassem gradualmente da democracia" fossem isolados e que, se necessário, fosse permitida, inclusive, a intervenção[1].
Essa resolução não foi aprovada. Não satisfeitos, os EUA voltaram à carga. Agora, por ocasião da reunião dos ministros da Defesa em Quito, ocorrida em novembro de 2004. Nessa ocasião, propôs "Donald Rumsfeld, apoiado por dirigentes colombianos e centro-americanos, elaborar uma nova concepção da ´segurança preventiva´ e de constituir uma força multinacional latino-americana —sob o comando do Pentágono, evidentemente", para atuar na América Latina [2].
Neste contexto, em 24 de novembro de 2004 —conforme registro da página Senado paraguaio na internet—, o país vizinho assina um "acordo por troca de notas" que trata de exercícios e intercâmbios militares com os Estados Unidos.
Este acordo foi internalizado no ordenamento jurídico paraguaio pela lei nº 2.546/04, que prevê 5 exercícios militares conjuntos entre os meses de janeiro e junho de 2005. Porém, ao que tudo indica, o acordo foi prorrogado pela mensagem nº 282, enviada no último dia 7 de junho pelo Executivo do Paraguai.
Na mensagem, o governo paraguaio solicita o "ingresso no país de tropas das Forças dos Estados Unidos da América, com armas, equipamentos e munições, a fim de realizar exercícios e intercâmbios militares bilaterais [...]”, no período compreendido entre julho de 2005 a dezembro de 2006.
O texto prevê a realização de treze exercícios militares, com a participação de "forças especiais" e a utilização de aviões e helicópteros. Em outras palavras, este acordo permite a instalação de uma "base militar" norte-americana "no olho do furacão" —se não permanente, pelo menos temporária—, além de conceder tempo suficiente para mapear toda a região da tríplice fronteira e da fronteira com a Bolívia.
O desembarque de militares americanos para participar de exercícios, inclusive na Tríplice Fronteira —área estratégica pela presença da Itaipu e do Aqüífero Guarani— é a consolidação de um sonho que vem desde 2001. Na época, após os atentados contra as torres gêmeas, o sub-secretário Douglas Feith (Defesa) sugeriu ocupar esta área, onde, segundo ele, haveria terroristas.
Apesar da negativa dada tanto por autoridades paraguaias quanto norte-americanas, esta entrada pode consolidar a permanência definitiva dos militares dos EUA no Paraguai, uma vez que há anos um aeroporto na região do Chaco é mantido pelos americanos [Glass, V. Agência Carta Maior, 01/07/2005].
Os soldados e demais contingentes que participarão dos exercícios chegam com imunidade diplomática aprovada pelo parlamento paraguaio no último dia 26 de maio. Segundo a ministra paraguaia Leila Rachid (Relações Exteriores), "os soldados [americanos] terão as mesmas prerrogativas que os funcionários técnicos ou administrativos de delegações diplomáticas que capacitam nossos compatriotas", e que a imunidade total só seria dada àqueles "que trabalharem com causas humanitárias"[3].
É comum países assinarem acordos de exercícios militares conjuntos, com os EUA ou não, mas não é comum constar destes acordos a concessão de imunidades diplomáticas para os soldados.
Pela lei aprovada pelo Paraguai, todos os efetivos norte-americanos contarão com as mesmas prerrogativas de um funcionário diplomático. Ou seja, o país vizinho renuncia ao direito de submeter os "visitantes" ao seu sistema judicial, às cortes internacionais, ou a qualquer outro tribunal que não seja dos Estados Unidos.
A imunidade diplomática para soldados americanos em serviço no exterior passou a ser defendida, muito recentemente, com o objetivo de resguardá-los de possíveis práticas criminosas. Ganhou relevo a partir da invasão do Iraque, notadamente em razão dos fatos ocorridos nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo.
A prerrogativa da imunidade diplomática está disposta na Convenção de Viena. No caso destes soldados, vale a pena destacar o que diz respeito à inviolabilidade pessoal e à imunidade de jurisdição penal, civil e administrativa.
Essa imunidade significa que, por mais criminosa que seja a ação de qualquer um dos americanos que compõem a "tropa de treinamento" que está no Paraguai, eles não poderão ser presos ou detidos. Somente poderão ser julgados por crimes de alçada penal, civil e administrativa em tribunais dos EUA.
Muito ainda se debaterá sobre este tema, mas duas outras questões são importantes para o debate. A primeira: quantos serão os militares e civis que vão atuar no Paraguai, e se não vai repetir o que ocorreu na Colômbia.
O "Plano Colômbia" limitou em 400 pessoas o número de militares americanos a atuar nas operações de combate ao narcotráfico. No entanto, o Congresso colombiano, ao aprovar o plano, em julho de 2000, autorizou, além da presença dos militares, a de 400 agentes de investigação civis"[5]. Com isso, permitiu que empresas como a Dyncorp, que emprega mercenários e executam ações militares e de espionagem, tivessem suas atividades legalizadas na Colômbia.
A segunda questão diz respeito ao Mercosul. Cada Estado parte do bloco tem a sua soberania preservada. Portanto, sobre isso nada a questionar. Mas o que deve ser debatido é o quanto o fato de as tropas americanas estarem estacionadas no Paraguai —e o que pode existir por trás desse fato— poderá afetar na construção do bloco.
Um bloco de países não se constrói meramente com relações econômicas, mas com a construção de uma identidade política, econômica, social e cultural. Um bloco somente será possível se as fronteiras geográficas forem borradas, e os países começarem a enxergar seus vizinhos não como inimigos, mas como parceiros de uma construção.
Porém, como fazer isso sem desconfiança, se o vizinho dorme com o inimigo?

[1] L. Maurice, Sinais de fraturas. Le monde Diplomatique, Ed. brasileira , nº 65/jun.05.
[2] Idem.
[3] Glass, V. Agência Carta Maior, 01/07/2005.
[4] Le Monde Diplomatique, Ed. Brasileira , nº 58/nov.2004.

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