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René Queiroz

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domingo, dezembro 10, 2006

O Brasil e a filosofia política

A filosofia política raras vezes, ao longo da história, esteve desligada da política imediata ou próxima. Não é o que imaginamos no Brasil, onde nutrimos uma visão meio empertigada da filosofia, afastada dos problemas de nosso dia a dia. Mas penso que faz parte da condição subdesenvolvida, ou melhor, da aceitação de um papel subalterno no jogo político mundial, a idéia de uma excessiva solenidade dos textos e mesmo das grandes obras. Enquanto não rompermos com este esquema respeitoso, submisso, em relação aos clássicos - ou às duas ou três línguas européias, e aos quatro ou cinco países do Atlântico Norte que oligopolizam a reflexão dita de ponta -, não iremos além da dependência, e de uma dependência, mais que tudo, introjetada, escolhida e acatada por nós.
Provavelmente isso decorra de um equívoco em relação ao termo "clássicos". Acostumados que estamos a olhar de longe os centros de produção econômica e intelectual, tudo se torna grandioso, único, apartado do cotidiano. Mas basta ver de perto os clássicos, de ontem ou de hoje, para perceber que as circunstâncias sempre detiveram importante papel em sua produção. Isso vale em particular para a filosofia política: dificilmente ela nascerá de fora da política, ou pelo menos da atenção a ela. É verdade que muito autor, como Maquiavel banido de Florença ou Hobbes refugiado na França, escreveu sobre a política quando estava impedido de praticá-la. Mais ainda: escreveu sobre a política porque estava impedido – sobretudo Maquiavel – de praticá-la. Mas mesmo assim sua reflexão brotava de uma ação, pelo menos, sonhada. Sem a ação no horizonte, não há filosofia política. Daí que não tenha cabimento nossa tendência, quase subserviente, a imaginar que a filosofia só ocorre quando o pensador assume a cátedra e pontifica.
Ora, a posição de pontífice convém mal à filosofia. Esta só tem sentido, pelo menos no que diz respeito à pergunta sobre a ação - e portanto à ética e à política -, quando assume um tom crítico, o que, em nosso tempo, significa demolidor e mesmo subversivo.
Assim, se os conceitos, idéias e suspeitas, que nascem da filosofia política, têm alguma serventia, esta está em serem postos a funcionar. Um dos modos disso é fazê-los pensar uma sociedade – no caso, a brasileira. Estou persuadido de que o deslanche entre nós da filosofia política – que é uma das áreas da filosofia em que temos gente bem capacitada trabalhando – dependerá em boa medida de sabermos priorizar questões com as quais sintamos um compromisso forte, desse que nos agarra pelo estômago, e não apenas um vínculo frouxo, estritamente contemplativo. A filosofia política precisa assim explicitar muito bem seu elo com o mundo da ação, com tudo o que este possui de frágil, duvidoso, efêmero.
Basta, aliás, ver que ainda hoje consumimos obras que nos vêm do mundo capitalista avançado, e que partem de um problema ou episódio específico de lá; mas nem por isso têm, esses livros, menor valor; o curioso é que são repetidos por aqui, e até se explica, a nossos concidadãos que os leiam, o contexto preciso em que nasceram. Deixo claro que essa origem não amesquinha tais obras; mas raras vezes nos atrevemos a começar, também, de algo tão frágil, local ou datado. As circunstâncias do mundo desenvolvido, por débeis que sejam, ainda expressam a nossos olhos uma dignidade, mais que isso, uma necessidade, de que nossa vida, social ou política, parece desprovida. Em outras palavras, continuamos achando que o universal pertence ao I Mundo, e que estamos confinados no particular. Pouco importam os inúmeros trabalhos que, nestas décadas, a começar pelo Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, mostraram como nossa condição de esguelha, de viés, de través pode permitir uma leitura pelo menos original: em filosofia, continuamos reféns de alguma dependência1. A ambição deste livro estará atendida se contribuir para deslanchar uma reflexão, uma produção neste rumo.

Renato Janine Ribeiro

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