Política e politesse: cotidiano e vida urbana
As maneiras,os modos, a “boa-educação” constituem um Ideal de Ego referido à vida em comum, conformado na palavra politesse. Cortesia, amabilidade, delicadeza e atenção estabeleciam o convívio no espaço que define a coabitação e a cidade. Vida política é vida na polis. Se há a vida rude, o ruralis e a rusticitas, a vida na polis é polida, é civitas e urbanitas. Por isso, a convivialidade na Ágora antiga era presidida por Afrodite, a “deusa dos sorrisos”, com o que os gregos reuniam política e graça. A charis grega é “atratividade e beleza”, “serenidade e reconhecimento”. Daqui derivam “grato” e “ingrato”, a inclinação para “fazer o bem”, de um lado; a designação daquele que “não merece reconhecimento”, de outro.Graça e grato são pessoas ou coisas acolhidas em razão de um conjunto de qualidades consideradas amáveis. Por isso são bem-vindas. A graça associa-se também ao que agrada, à gentileza nas maneiras, tudo o que constitui uma espécie de encantamento. Para o povo grego, amante da beleza, esta é apreendida nas relações de simetria, na coordenação das partes com o todo, nos “divinos laços da harmonia”. A Atenas de Platão e Aristóteles, a Roma de Cícero e Ovídio permitiram a passagem da villania à urbanitas; do cavaleiro medieval que age “como um leão”- e não necessitava dar provas de continência - aos torneios dos guerreiros nobres, que simulam a violência, controlando a agressividade. Quanto mais a aristocracia guerreira e violenta se urbaniza mais ela se desarma.Entre a moral e o direito, as maneiras nascem da necessidade de atenção ao Outro e consistem em uma “arte da convivência”, pois a politesse prescreve limites aos comportamentos, considera regras, criando códigos não escritos mas que tornem possível e confortável a vida em sociedade. Se, na Idade Média, os cortesãos praticavam um saber-viver privativo aos castelos, com a civilidade humanista de Erasmo ela se democratiza para todas as crianças, todos os plebeus, camponeses e burgueses, sendo o desejo consciente de bem-viver, não mais distinção de uma classe e privilégio de uma elite, única antes a deter os critérios da “ perfeição”.Os valores vinculados às boas-maneiras conformam os “cuidados de si” e uma estética da existência, analisados por Foucault na História da Sexualidade. Ética,estética e dietética são “medida”, “moderação” e "domínio de si”, e se ampliam aos hábitos de mesa: a arte de sentar-se, a dos gestos, de comer e beber; mas também arte da conversação, a escolha das palavras e a pronúncia bem articulada para a comunicação elegante e clara.Sem descuidar de que as maneiras são do âmbito da aparência da virtude e não a própria virtude, elas, no entanto, dão a conhecer o “homem exterior” como ele deveria ser interiormente. Dizer “por favor” é aparentar respeito, “obrigado” é atestar reconhecimento. A politesse e a etiqueta - a pequena ética - quando esvaziadas de seu sentido moral, transformam-se em protocolo do frívolo e do inútil, da dissimulação, da humilhação e da exclusão. Na tradição filosófica moderna e na educação formadora do espírito especulativo e da vontade prudente, tratava-se, antes de mais nada, de todos aprenderem as “maneiras”, mas sem se contentarem com elas, a fim de aceder, por seu intermédio, à virtude que imitam. A politesse é uma aparência de virtude de onde as demais provêm. Suas injunções e práticas podem ser fúteis mas as razões de sua existência são as da maior seriedade.
Olgária Mattos filósofa e professora titular da Universidade de São Paulo.
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