Ia postar um ultimo texto de 2008, quando lendo Fabricio Carpinejar percebi que tudo já havia sido falado, desisto e coloco o maravilhoso texto deste amigo virtual-
ADEUS 2008
Você não conversa com morto.
Foi o que me disse. "Não converso com morto."
Sem tempo para esfriar a boca. 2008 termina. Com ele, treze anos de meu casamento contigo. Não é uma virada qualquer. É a passagem violenta de uma década. De uma biografia. Algo como mudar de religião, de nacionalidade, raspar as sobrancelhas. Quando ando pelo centro, ninguém imagina que minha mão esquerda é o osso deslocado de uma casa. O cheiro do café é a minha única roupa que ficou no cabide. Não adianta perguntar o que aconteceu. De quem é a culpa pelo fim? A culpa é quando invejamos o que deixamos de ser. É desistir de imaginar mais do que perdoar. Em nosso namoro, só usava terno. Agora estou com jeans surrado e uma camisa de um time inglês. As roupas indicam que tento rejuvenescer enquanto um velho de pijama em mim busca o jornal do jeito que saiu da cama. Alheio aos vizinhos. Com os chinelos dos pintassilgos da manhã. O menino ingênuo e fascinado pelos livros e vestido branco cresceu. Desculpa, não é o homem que esperava, é o que pude me tornar. Não serei também ingrato, a ponto de apagar o que aprendi. Sim, era envergonhado, fugidio, e apresento hoje uma coragem que me endivida. É curioso pensar que continuo a escutar nossas conversas na cozinha, quando esperava que largasse a cadeira da porta para escorar as pernas na parede. Talvez tenha recebido mais do que oferecido. Eu nem era escritor e a amava. O escritor surgiu como resposta de seu amor. O que me assusta é que não dói mais. Estou tão vulnerável que não sinto nada. Tudo me engravida e eu perco. Perco muitas crianças em cada lembrança. Observo o apartamento que já não é meu, como se o último ano estivesse para ser alugado. Sou um hóspede com memória de morador, o impulso de tocar o que não me pertence. O conjunto de peças de demolição que compramos, a manta vermelha para cobrir o sofá, a poltrona para leitura, o tapete que nos obrigou a adiar as férias. Quando entramos no imóvel, contávamos com apenas um colchão, algumas estantes e um abajur trincado. Lembro o quanto custou cada superfície de nossa paz. Procuro me controlar para não arrumar as venezianas e pintar as paredes. Vai reparar que não resisti e troquei as lâmpadas do lustre do quarto. Deduzi que precisava de luz para dormir. A verdade é que não sou mais daqui, sequer de outro lugar. Se não tenho para onde voltar, não tenho para onde ir. Minha antiguidade é recente. Escolhi seguir com as cinzas. Dentro do fogo, há vento para me levar. Pouco entendo como conduzirei papéis que nem sabia que existiam - e que cuidou em exercê-los sem cobrar e exigir. Não farei a sina de vítima. Nunca fui vítima a seu lado. Parece que é escárnio agradecer o que vejo em você se não permaneço no casamento. Não desejo que o ódio pela ruptura seja maior do que a alegria que experimentamos. Continuar não seria preservar. Continuar nos enfraqueceria a ponto de duvidar do começo. Temos um filho lindo para criar. Puxou sua generosidade. Vem emprestando seu boneco para ocupar meu lugar na cama. Explicou que pode se virar sozinho por enquanto. Quando nasceu, a primeira fotografia que o nosso menino tirou foi a de seu rosto. Eu fui sua terceira imagem, depois do médico. Confessou isso ontem, juro. Seus traços estão debaixo do que ele enxerga. O mundo parte de seu rosto, sempre partiu, o mesmo rosto que afundava em meus ombros e que agora é o porta-retrato que guardo das ruas de São Leopoldo. Atravessei uma cidade em seu corpo, eu me atravessei em seu corpo. Mortos não falam, mas ainda escrevem.
Fabrício Carpinejar
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