Chávez, o Brasil e a Embraer...
O obstáculo norte-americano à venda de aviões da Embraer à Venezuela não é a primeira nem muito provavelmente será a última intervenção indevida neste item tão delicado da pauta de exportações brasileiras. Em outubro de 2002, o general James Hill, então chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, vetou a compra de 40 aviões Emb-314 pelo governo colombiano, sob o pretexto de que não eram adequados ao combate à guerrilha na selva e nas montanhas, segundo parâmetros do Plano Colômbia, firmado anos antes pelos presidentes Bill Clinton e Álvaro Uribe Vélez para combater a guerrilha e o narcotráfico no país. Mesmo sabendo da consulta formal à empresa brasileira, Hill despachou memorando ao comandante das forças militares colombianas à época, general Jorge Enrique Mora Rangel, “aconselhando-o” a desistir do negócio. Alguns anos depois, a Colômbia comprou 25 unidades do modelo Super Tucano, com a anuência norte-americana, é claro.
A questão principal embutida nos negócios externos da Embraer reside no mercado internacional. A fábrica brasileira conquistou reputação e respeito a ponto de enfrentar grandes concorrentes mundiais, como a canadense Bombardier, na preferência dos clientes norte-americanos, europeus e até chineses. O argumento do general James Hill era frágil, porque a empresa brasileira produz aeronaves de médio porte próprias às condições do mercado brasileiro e, por extensão, sul-americano. Agora, o pretexto formal é que ela repassaria à Venezuela tecnologia contratada nos Estados Unidos, o que eriça os pêlos dos militares de Bush. A Embraer deixará de faturar com o negócio avaliado em meio bilhão de dólares – a não ser que conte com o apoio firme e decidido do governo brasileiro para reverter a situação.
O Itamaraty, na realidade, defende os interesses da empresa brasileira desde o governo Fernando Henrique Cardoso, quando ela sofreu pressões contra o fornecimento a uma empresa norte-americana de aviação civil de médio alcance. A Bombardier, na época, mobilizou o governo do Canadá, apelou para as condições privilegiadas de comércio no âmbito do Nafta (o acordo de livre comércio entre México, EUA e Canadá) e sensibilizou autoridades civis e militares dos EUA na defesa de um mercado que considera cativo (afinal, a empresa canadense mantém prudente distância dos países ao sul do continente, justamente para evitar problemas com o poderoso vizinho lá em cima). Ocorre que o mercado globalizado expandiu as oportunidades para a competente Embraer.
Por outro lado, o componente político e ideológico da transação que ocupa o chanceler Celso Amorim no momento também não é novidade. Há menos de dois meses, o governo Bush pressionou a Espanha para romper o contrato recém-firmado pela empresa EADS-Casa com a Venezuela para o fornecimento de 12 aviões de transporte militar também com tecnologia norte-americana, além de oito barcos de patrulha, num total aproximado de US$ 2 bilhões. Aliada dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha na invasão do Iraque, em março de 2003, a Espanha ignorou a pressão e a fábrica manteve o negócio, mesmo ante a ameaça de ter de trocar a tecnologia atual por outra, francesa. Inclusive porque o valor contratado não é nada desprezível em nenhuma balança comercial.
É mais ou menos no mesmo contexto que a diplomacia brasileira vem trabalhando para convencer o governo Bush de que a Venezuela não está sujeita a qualquer sanção ou bloqueio e que pode perfeitamente substituir a Embraer por empresas do outro lado do mundo, onde o Estado controla esse tipo de indústria, mesmo depois do fim do bloco soviético. Foi, aliás, o que o presidente Hugo Chávez deixou patente, dias atrás, ao denunciar o boicote de assistência técnica aos caças F-16 comprados pela Venezuela nos Estados Unidos há muitos anos: "Se temos de substituir essa frota de F-16 por uma frota moderna de aviões MiG (de fabricação russa), nós o faremos”, ameaçou, conforme registro da agência France Presse reproduzido nos jornais brasileiros.
A Venezuela é um excelente freguês, com muito dinheiro em caixa. É membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a ainda poderosa Opep, que dita o preço do barril em nível internacional. Graças à robustez da economia, promove não só a modernização do seu aparato militar, mas principalmente as transformações de base em benefício da maioria da população, pobre e historicamente desassistida. Está constantemente firmando pactos internacionais que fortalecem parceiros como Cuba, que fornece médicos para assistência pública gratuita. Da Argentina, adquiriu títulos no valor de quase US$ 1 bilhão, ajudando em muito o governo Néstor Kirchner a saldar a dívida com o Fundo Monetário Internacional. Com a Bolívia de Evo Morales, propõe parcerias que incluem o envio de técnicos da estatal petrolífera, médicos e sanitaristas cubanos e até especialistas em comunicação social. E com o Brasil acelera a cooperação com a Petrobrás, tendo a construção de uma refinaria em Pernambuco como a parceria principal, no valor estimado de US$ 2,5 bilhões.
Todos os passos da economia externa venezuelana estão vinculados à política de esquerda e à confrontação com o grande império do norte, os Estados Unidos. Daí a Venezuela liderar a campanha da criação da Alternativa Bolivariana para as Américas, Alba, em substituição à proposta norte-americana da área de Livre Comércio das Américas (Alca). Daí o governo Bush não gostar nem um pouco da crescente influência venezuelana no continente. Na realidade, nem mesmo sua administração escapa à ofensiva venezuelana. Aproveitando-se do fato de manter mais de 10 refinarias de petróleo no sul dos EUA, a Venezuela firmou acordos com sindicatos de trabalhadores na área mais afetada pelos furacões que recentemente expuseram a face miserável da sociedade norte-americana, para o fornecimento de combustível de aquecimento de residências a preços até 40% inferiores aos das empresas locais.
Parece óbvio que, para conduzir uma ofensiva internacional desta envergadura, é imprescindível um líder carismático e polêmico como Hugo Chávez. O que ajuda de um lado, de outro às vezes incomoda, como o caso da compra dos aviões da Embraer. Na abertura do ano acadêmico militar, na semana passada, ele atacou como de costume o governo Bush, destacando as pressões para impedir o negócio com a Embraer. A publicidade do caso provocou o recuo momentâneo da investida diplomática brasileira e ainda forçou o ministro Celso Amorim a assumir publicamente as críticas do presidente venezuelano. Já há algum tempo George Bush escolheu para o Brasil o papel de líder subcontinental na contenção dos ânimos antiamericanos abaixo do Equador. É um papel ingrato e requer, além de muita diplomacia, o folclórico “jeitinho brasileiro” para ouvir sem concordar e também concordar sem dizer, dependendo do interlocutor e das circunstâncias. Até o momento, o Itamaraty vem se saindo bem e a concretização do negócio dos aviões pode representar passo mais importante do que sugere uma avaliação ligeira.
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