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René Queiroz

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quinta-feira, janeiro 21, 2010

Haiti por Eduardo Galeano

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca idéia de querer um país menos injusto.
O voto e o veto
Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito com um voto sequer. Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe: – Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.
O álibi demográfico
Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema: – Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode. E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado. Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas. Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.
A tradição racista
Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses". O Haiti fora a pérola da coroa, a colónia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das Leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro". Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".
A humilhação imperdoável
Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos tinham conquistado antes a sua independência, mas meio milhão de escravos trabalhavam nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores. A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava do Haiti, ninguém vendia, ninguém reconhecia a nova nação.
O delito da dignidade
Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar conseguiu reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra. Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. A essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, a modo de perda por haver cometido o delito da dignidade. A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.
Eduardo Galeano

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Haiti, estado de sitio permanente...

Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante.
Quando não “treme” pela pobreza extrema – aqui entendida como desemprego epidêmico, fome crônica e a ausência de saúde e educação públicas -, é a vez das crises políticas e das tragédias naturais: tempestades tropicais, enchentes e furacões. Para dar um exemplo, quatro furacões deixaram cerca de mil mortos e 18 mil desabrigados em 2008. Corpos apodreciam na água das enchentes, não havia estrutura de socorro, o dinheiro e a ajuda humanitária chegavam lentamente. Há pouco, semanas atrás, acabou a temporada de furacões na América Central e, agora, o país se debate com um surpreendente terremoto de magnitude inédita nos últimos 200 anos.
Aliás, dois séculos atrás é aproximadamente o tempo histórico da vitória da única rebelião de escravos que levou à independência de uma nação desde a Antiguidade clássica. Um passado glorioso que vem sendo ofuscado por um presente de pobreza e crises. Desde a deposição do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, a situação política oscilava entre momentos de paz, violência e fragilidade política. Mas a pobreza resistia. E a cada fenômeno natural, o espectro da destruição pairava sobre eles. A diferença é que desta vez, a tragédia une brasileiros e haitianos. Haverá mais confirmações de mortes entre os brasileiros capacetes azuis e diplomatas da ONU. A médica Zilda Arns teve ironicamente sua vida ligada ao país do continente americano com um dos piores índices de desnutrição e mortalidade infantil, onde queria implantar as bases da Pastoral da Criança.
O impacto do terremoto sobre o Haiti é brutal porque seu epicentro foi muito próximo de uma das regiões mais populosas, a capital Porto Príncipe. O país tem um território comparável ao de Alagoas, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mais ou menos 3 ou 4 milhões vivem só na capital, em favelas de tijolos frágeis, de estruturas baratas, improvisadas. Na cidade, onde os ricos moram nos morros e os pobres na parte plana próxima ao mar, o impacto foi maior em bairros com construções de mais de um piso. A região do Palácio do Governo, vizinha da favela de Bel Air, foi destruída. A situação se repete em bairros mais horizontais, como Carrefour, Delmas e Cité Militaire. Na região de Cité Soleil, de barracos de zinco e tijolos finos, os danos não foram menores.
O distrito de Petion-Ville, no alto da cidade, onde ficam as sedes das embaixadas e organizações internacionais, sofreu grande impacto. Até o Hotel Montana foi atingido, um quatro estrelas versão haitiana, onde morreu o general brasileiro Urano Bacellar em 2006. Passarão semanas para as contagens dos mortos e desaparecidos. O Palácio do Governo, que desmoronou quase completamente, era um centro político e uma espécie de residência do presidente. No hall revestido de mármore sob a cúpula central do palácio, ficavam as estátuas de Simon Bolívar e Alexandre Petion. Frente a frente. A poucos metros da vista ampla da planície da praça. Esses símbolos foram completamente soterrados no terremoto.
Um país imóvel
Vale lembrar que, em novembro de 2008, uma pequena tragédia se abateu sobre o distrito de Petion Ville. Ali, sem temporal, sem vento, sem terremoto, a escola primária La Promésse desabou. Simplesmente veio abaixo pela precariedade de sua construção. Matou cerca de 100 crianças e feriu outras 150. O presidente haitiano, René Préval, disse na época que a fragilidade e a debilidade do Estado permitia a existência de construções precárias e ocupações ilegais, o que aumenta a possibilidade de vítimas. O Haiti tentava reestruturar seu Estado com a ajuda da quinta missão de paz da ONU nas últimas décadas. Mas ainda não havia um sistema de defesa civil estruturado, o que vai piorar a situação agora no socorro e atendimento a feridos. Quem não morreu diretamente pelo terremoto corre o risco de morrer por falta de estrutura de bombeiros ou atendimento médico.
Porto Príncipe já possuía uma infra-estrutura precária. Energia elétrica era luxo. Quem tinha convivia com apagões diários. A distribuição de água era feita, muitas vezes, por caminhões-pipa e fontes de água. Em bairros inteiros, a população se abastecia com baldes. Cité Soleil, a maior favela da cidade, era um exemplo. Agora, com o terremoto, a estrutura de abastecimento de água também sofreu. Num país que importava mais da metade da comida para manter as necessidades básicas da alimentação de seu povo, a água voltou a ser escassa. Todo o combustível do país também é importado. Dificilmente um plano de emergência, com o envio de maquinário pesado, conseguirá colocar em prática um mutirão de salvamento em grande escala para evitar mais mortes. O país está quase imóvel dois dias após o abalo principal.
A ajuda da ONU e a dívida externa
O número de mortos – ouve-se agora uma estimativa do governo haitiano de cerca de 50 mil – seria pelo menos cinco vezes maior do que o total de brasileiros enviados à missão de paz das Nações Unidas nos últimos seis anos. O terremoto deve aproximar mais Haiti e Brasil. Nos últimos tempos, nossos enlaces com o país caribenho aumentaram. Além dos capacetes azuis, ativistas, acadêmicos e religiosos procuravam estreitar relações com o povo. A estrutura da ONU no país sempre esteve longe de mudar o perfil da pobreza e das necessidades básicas para o país se reerguer: trabalho, saúde, educação. Iniciativas como a da médica Zilda Arns eram um pedido de entidades haitianas desde a chegada da ONU por lá, há seis anos. Envio de médicos, engenheiros agrônomos, professores, gestores públicos, entre outros. Tudo que vai faltar em dobro agora.
Do fim da vida de Zilda Arns no Haiti, cabe ainda um recado, acredito. A mudança no perfil da missão da ONU no Haiti é urgente mais uma vez. O estágio relacionado à segurança pública pode ter sido questionável, mas há tempos foi superado.
Temos a oportunidade agora de ajudar com menos tropas militares e mais parcerias para a reconstrução e desenvolvimento do Haiti.
A começar pelo perdão da dívida externa de cerca de 2 bilhões de dólares, uma porcentagem ínfima na comparação com os rios de dinheiro que os países ricos gastaram para socorrer o sistema financeiro internacional da gana de seus próprios especuladores.
Aloisio Milani é jornalista e assina um blog especializado em Haiti

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Zilda, nosso Haití ainda é aqui!


Dá uma vontade imensa de chorar.
Tem gente que, apesar de seu gigantismo ultrapassa muito a limitada vida que temos
Dá uma vontade imensa de chorar.
Vai com deus, minha, nossa, irmã.
Outros tentarão te seguir na obra.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Muro de Borracha

No livro que tem como subtítulo Eu e os Criminosos de Guerra, Carla del Ponte, a primeira a assumir o encargo de chefe do Ministério Público no Tribunal Penal Internacional (TPI), usou a expressão “muro de borracha” para definir não apenas a dificuldade da sua transposição em questões judiciais, mas especialmente o retrocesso experimentado quando se tromba contra ele. De fato, jamais foi fácil a tarefa de não deixar impunes os crimes quando, de permeio, os poderosos erguem muros de borracha. Del Ponte, caso morasse no Brasil, estaria a assistir a paralisação das apurações e dos processos judiciais contra o banqueiro Daniel Dantas nos casos Satiagraha e Kroll, determinados no fim de 2009 e janeiro de 2010, respectivamente. Mais ainda, contemplaria o transporte por caminhão, de São Paulo para Brasília, de todos os documentos relativos à referida Operação Satiagraha, por ordem do ministro guardião Eros Grau. O mesmo que, sem determinar eleição, conduziu, em 2009, Roseana Sarney ao governo do Maranhão e anteriormente, na condição de relator, deu sustentação à escandalosa liminar de soltura concedida ao banqueiro Dantas pelo ministro Gilmar Mendes, em habeas corpus e sem competência. Na verdade, tratou-se de novos muros de borracha quando o de anos anteriores havia ruído, caso, por exemplo, daquele alicerçado na proibição de perícia nos discos rígidos do Banco Opportunity, determinada por Ellen Gracie. A ministra, em 2009, diminuiu a importância do seu cargo no STF ao querer trocá-lo por um tribunal de comércio sediado nos EUA, onde acabou reprovada no processo seletivo. Assim, faliu, como se diz entre aldeões portugueses, a sua tentativa de passar de cavalo a burro. O TPI foi instituído, pelo Tratado de Roma, em 18 de julho de 1998. Sua competência decorre da necessidade de punir os responsáveis por atrocidades caracterizadas pela negação da dignidade humana. Como o TPI não conta com jurisdição retroativa, o Brasil, que está entre as 120 nações que o aceitaram (sete ficaram de fora), jamais assistirá a julgamentos de processos criminais contra aqueles que, entre 1964 e 1989, perpetraram terrorismo de Estado, a fim de sustentar uma ditadura. No Brasil, 144 dos nossos conacionais foram assassinados sob tortura durante o regime de exceção. E o número dos desaparecidos, sob custódia do regime militar, chega a 125. A conspiração militar que resultou no golpe de 1964, e contou com contribuição financeira, doutrinária (Doutrina Mann, do secretário para Negócios Interamericanos), política e bélico-naval dos EUA (Operação Brother Sam, capitaneada pelo porta-aviões Forrestal, que ficou à disposição), foi regida pelo general Humberto Castelo Branco. Antes dela, o general Olympio Mourão Filho, de perfil filo-integralista que comandava a região de Minas Gerais, ensaiara o golpe com a sua abortada Operação Popeye. A ditadura militar, decorrente de golpe que tirou do poder ao arrepio da democrática Constituição de 1946 o presidente João Goulart, passou, não bastassem os atos institucionais, a calar, pela tortura e prisões, os opositores, num endurecimento iniciado logo em 1965. Com o famigerado Ato Institucional número 5, cujo texto foi da lavra do então ministro da Justiça Gama e Silva, conferiu-se ilegitimamente ao presidente da República poderes para cassar direitos políticos, suspender o remédio heroico do habeas corpus, censurar a imprensa, prender por opinião, aposentar professores incômodos etc. A luta armada, uma reação legítima contra o golpe e o terror de Estado, começou a ser articulada em 1967 e se mostrou apenas em 1969, sem a participação do Partido Comunista Brasileiro, que adotara a linha da oposição sem violência: a posição do PCB, chamado de Partidão, levou Carlos Marighella a criar e comandar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Apegado à máxima de que a história é escrita pelos vencedores, o regime ditatorial, por perceber que chegava à exaustão e por cautela voltada a conferir um bill de indentidade e impunidade aos agentes do terror, elaborou, em 1979, a chamada Lei da Anistia (Lei nº 6.683). A que concedeu, em plena ditadura, anistia aos autores de crimes políticos, conexos a eles ou por motivação militar. Como se nota, a referida lei representa caso típico de autoanistia, em pleno regime excepcional. Os ditadores de plantão e seus serviçais olvidaram, à época, que o Direito Internacional e as convenções subscritas pelo Brasil, desde 1964, já criminalizavam os atos de lesa-humanidade, como a tortura, o terrorismo, o genocídio etc. Também não reconheciam prescrição, anistia ou outra hipótese aniquiladora do direito de punir e da efetivação de sanção imposta com observância do devido processo legal. Esse tiro pela culatra começou a ser percebido, no Brasil, quando a Espanha, que teve lei de anistia promulgada em 1977 (depois da morte do general-ditador Francisco Franco), começou, no governo socialista, a projetar a chamada Lei para Recuperar a Memória Histórica, só aprovada pelo Parlamento em 2007. A meta principal era escrever a verdadeira história. Fora isso, procurou-se
(1) restabelecer direito às famílias em face de condenados à morte por infamantes tribunais de exceção;
(2) remover símbolos do regime de arbítrio;
(3) localizar as fossas onde estavam sepultados os assassinados por delitos de opinião e oposição à ditadura e indenizar sobreviventes de tortura ou seus sucessores.
Recentemente, num escrito de uma ativista de direitos humanos de Madri, quando havia esperança de se encontrar a fossa com os espólios do poeta Federico Garcia Lorca, ficou assinalado que, quando se tenta apagar a memória das vítimas de tormentos, aparece sempre um fantasma para não deixar morrer as lembranças. No fim de 2009, mais precisamente em 21 de dezembro, o governo Lula deu um passo largo ao anunciar e formalizar o Programa Nacional de Direitos Humanos, que designa um grupo de trabalho incumbido de redigir, até abril de 2010, um projeto de lei a instituir uma Comissão Nacional da Verdade. O referido órgão, com prazo determinado, terá a incumbência de examinar as violações de direitos humanos durante o regime militar (1964-1985). Está previsto também levantamento histórico a respeito da ditadura Vargas, da revogação da Lei da Anistia de 1979 e da edição de lei, a exemplo da Espanha, a proibir manutenção de nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade em logradouros, próprios públicos, ruas, viadutos etc. Esse fecho de 2009 era animador ao projetar grande progresso no campo dos direitos humanos em 2010, com respeito às famílias das vítimas, e de se poder contar para as novas gerações a nossa verdadeira história. No entanto, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, montou um jogo de cena e até se fala ter Lula assinado, sem ler, o decreto do referido programa. Por não concordar com a redação, termos e metas do Programa Nacional de Direitos Humanos, o ministro Jobim, que amiúde gosta de envergar uniforme militar, apresentou ao presidente Lula um pedido de exoneração, em 22 de dezembro. Por evidente, contava com o aval dos comandantes das três armas. Tudo que teria sido acertado entre a Secretaria de Direitos Humanos e o Ministério da Defesa, incluído o termo reconciliação e a meta de apuração também de atos dos que optaram pela luta armada para combater o regime, foi glosado, segundo Jobin Apesar da formação jurídica e do tempo passado no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro embarcou no falso discurso do revanchismo contra as Forças Armadas e da legitimidade da Lei da Anistia. Esqueceu Jobim uma velha lição, ou seja, a responsabilidade criminal, por imprescritíveis crimes de lesa-humanidade e terrorismo de Estado, recai sobre a pessoa do infrator e não na corporação, Exército, Marinha ou Aeronáutica. Assim, responsabilizar um coronel Brilhante Ustra, apontado como responsável pela tortura de presos políticos nas celas do DOI-Codi, não implica mácula ao Exército Nacional. Quando o Judiciário afasta por corrupção um magistrado ou o Exército expulsa um soldado indigno da farda, alcança-se o aperfeiçoamento, ou melhor, não seriam a Magistratura e o Exército, nos exemplos dados, os punidos, mas membros das corporações que não se mostraram dignos. Membros das Forças Armadas nunca estiveram legitimados a promover terrorismo, torturar, sequestrar, matar e desaparecer com seres humanos. Vale frisar, ainda, que a autoanistia, em diversas oportunidades, foi declarada ilegítima pelas Nações Unidas e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se aceita, em síntese, a autotutela por anistia. Nem benefícios a tiranos são referendados e legitimados pela Corte de Direitos Humanos da União Europeia, sediada em Estrasburgo (França). Os então ditadores Franjo Tudjman, da Croácia, e Slobodan Milosevic, da ex-Iugoslávia, não lograram reconhecimentos espúrios, em detrimento de direitos humanos. A propósito, Milosevic, sob odor de crimes contra a humanidade e genocídios, morreu na prisão, por força de mandado expedido pelo TPI. A carta-renúncia de Jobin, aquele que confessou em livro laudatório haver fraudado a Constituinte e inserido artigos sem exame dos seus pares, não foi aceita pelo presidente Lula. O ministro luta pela manutenção da Lei da Anistia de 1979. Para torná-la ampla e irrestrita usa como pressão a ameaça contra os que se opuseram ao regime pela via armada, equiparando-os a assassinos e torturadores com o crachá da ditadura. Para entender melhor o quadro, os comandantes militares, na verdade e pelo porta-voz Jobim, desejam (1) apurar a atuação dos movimentos de resistência de esquerda e, em especial, as condutas da ministra Dilma Rousseff e do ministro Franklin Martins; e (2) não concordam com buscas e apreensões em quartéis e comandos militares, ou seja, pretendem manter arquivos secretos. A manutenção da Lei da Anistia, avisam os militares, representa “ponto de honra”. Nem tal manutenção, frise-se, favorece os autores ou mandantes de crimes de lesa-humanidade. Em ilustrativo artigo sobre a Lei da Anistia não impedir a punição dos que praticaram tortura e crimes de lesa-humanidade durante o regime militar, os procuradores da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero e Marlon Alberto Weichert, ambos mestres em Direito Constitucional, alertam não ser preciso revogar a Lei da Anistia, pois a punição dos crimes só depende de uma interpretação técnica do seu conteúdo:
“Ora, só praticam crimes políticos, ou com motivação política, os que desejam ir contra o Estado. Os atos dos órgãos de repressão visavam o contrário, ou seja, defender o governo, que, acrescento, era de exceção, golpista, antidemocrático e promotor de terrorismo de Estado”. A atual postura do ministro Jobim deve arrancar aplausos dos torturadores do DOI-Codi e da Operação Bandeirantes (Oban), dos membros do famigerado Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e do fantasma de Emílio Garrastazu Médici. Em resumo, tenta-se implantar um vergonhoso muro de borracha, a vedar para 2010 as esperanças de fechar, com a marca da verdade, esse período repugnante da nossa história. No governo, apesar das negativas, existem duas frentes em litígio, ou seja, a do ministro Vannuchi, da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, e, do outro lado, a encabeçada por Jobin, ministro da Defesa. Outro aspecto a considerar, no que toca ao tema anistia, diz respeito à morosidade da Justiça na solução sobre a constitucionalidade ou não da Lei da Anistia. Fora dos autos e pela constitucionalidade já se manifestou o presidente do STF, Gilmar Mendes. Em razão disso, estará tecnicamente impedido de julgar. Quanto à arguição de descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, sobre a Lei de Anistia, está a ocorrer descumprimento do disposto no artigo 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.882, de 3/12/1999. Nela se estabelece o prazo de cinco dias para a manifestação da Procuradoria-Geral da República. O prazo findou em 7 de fevereiro do ano passado e os autos continuam com o referido procurador. Num ano encerrado por dissensos entre Executivo e Judiciário e entre este e o Legislativo, tudo estará mais tranquilo em 2010, quando, em maio, assumirá a presidência do STF o ministro Cezar Peluso, que tem outro estilo, é juiz de carreira tarimbado, jurista e professor de direito sempre muito respeitado. Peluso parece já ter compreendido que o ativismo judiciário (eufemismo que significou, em 2009, a subtração de função constitucional exclusiva do Legislativo) e as precipitações e intromissões ao estilo Gilmar Mendes, só contribuíram para o descrédito da mais alta Corte. Enquanto o ministro Eros Grau sonha com a aprovação da emenda da bengala, que lhe daria mais cinco anos de STF, esboça-se na sociedade civil um movimento para reformas, a fim de se estabelecer, como nas cortes constitucionais europeias, prazo de sete anos de mandato para ministros, sem possibilidade de recondução. O recall revogação do mandato parlamentar só depende de regulamentação da Constituição, já proposta pelo Conselho Federal da OAB, em projeto da lavra e da autoridade do professor Fábio Konder Comparato.
Walter Fanganiello Maierovitch

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Brilhante!!!

Está nas bancas a imperdível edição especial da CartaCapital. Essa entrevista é apenas um exemplo:
No Brasil, hoje, não existe “nem República, nem democracia, nem Estado de Direito”, segundo o jurista Fábio Konder Comparato. Professor emérito da USP, doutor pela Sorbonne e Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, Comparato observa que a atual Constituição já foi remendada 68 vezes, mas em nenhuma dessas ocasiões o povo foi consultado. O jurista tornou-se um crítico implacável do atual governo. “Lula não enfrentou os grandes problemas nacionais. E não o fez porque põe em primeiro lugar o seu poder e prestígio”, avalia. Comparato diz ainda que Lula tenta exercer influência sobre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nomeados por ele. “Alguém do próprio Supremo me contou que o presidente, em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que eles não cumpram a vontade do presidente”, afirma.
CartaCapital: O fato de escândalos virem à tona hoje seria sinal de uma melhora no País? O sistema jurídico funciona a contento?
Fábio Konder Comparato: Eu descobri, num conto de Machado de Assis, a explicação que sempre procurava sobre o caráter nacional brasileiro. O conto é “O Espelho” e trata-se de alguém que numa roda de amigos afirma com espanto geral que cada um de nós tem duas almas. Tem uma alma externa que é aquela sempre mostrada ao público e, muitas vezes, é utilizada para nos julgarmos. E tem uma alma interna que é sempre escondida e serve para nós julgarmos o mundo de dentro para fora.
O nosso sistema jurídico político de fato tem duas almas, ele é dúplice em ambos os sentidos da palavra: é dobrado e dissimulado. Existe a alma externa que pode ser resumida no princípio de que todos são iguais perante a lei, mas existe a alma interna que não sustenta, mas está plenamente convencida de que há sempre alguns que são mais iguais do que os outros.
CC: O senhor poderia dar um exemplo?
FKC: Os exemplos abundam. Nesse particular, gostaria de lembrar mais um exemplo literário. Nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “ora a lei, a lei é o que senhor major quiser”. Então, completa o Manuel Antonio de Almeida: “o major sorriu-se com cândida inocência”. É um pouco isto.
A lei existe, em princípio, igual para todos. Mas sabemos. Como no último caso do “Arrudagate” em Brasília, a lei penal dificilmente se aplica ou não se aplica a todos aqueles que estão no poder. É exatamente isso que explica o fato de termos uma Constituição modelar, mas a nossa vida política estar muito longe do modelo constitucional. A Constituição se abre com a declaração de que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de Direito e, na verdade, nós não temos nem República, nem Democracia, nem Estado de Direito.
CC: Por que não?
FKC: No Brasil não existe a consciência de bens públicos. Quando um bem não é propriedade particular de alguém, ele não pertence a ninguém.
Então, a grilagem de terras públicas e a utilização de canais de comunicação, com o espaço público usado para a defesa exclusiva de interesses privados, é a regra geral. Um outro exemplo que todos conhecem no exercício dos cargos públicos: existe uma regra de ouro (uma referência moral): ‘Mateus, primeiros aos teus’. Quanto à democracia, a nossa alma interior, para voltar à comparação inicial, é e sempre foi a oligarquia. Povo não existe porque, a rigor, ele só passa a ter consciência dele mesmo nas grandes disputas futebolísticas. Fora disso, o povo não tem consciência de que ele existe, de que é digno e merece ser tratado com respeito.
Numa democracia, a norma ou conjunto de normas supremas que é a Constituição, obviamente, tem que ser aprovada pelo soberano. A soberania do povo é o supremo poder de controle. Mas nenhuma Constituição brasileira, até hoje, foi aprovada pelo povo. A atual Constituição já foi remendada 68 vezes, o que dá a apreciável média de mais de três remendos por ano. Em nenhuma dessas ocasiões chegou-se sequer a pensar em consultar o povo. Já não digo pedir a aprovação. E o Estado de Direito? Vou dar um exemplo gritante: os controles jurídicos sobre os poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público são muito débeis, em alguns casos totalmente inexistentes.Um exemplo atual com relação ao Ministério Público Federal: em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB), por uma proposta minha, decidiu ingressar com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no STF objetivando a definição, pelo tribunal, sobre a abrangência da lei de anistia de 1979. Ela beneficia ou não os homicidas, torturadores, estupradores do regime militar? Pela lei que rege essa demanda, o Ministério Público, quando não é o arguente, tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria Geral da República foi intimada no dia 2 de fevereiro de 2009 a se manifestar e, até hoje, mais de dez meses depois, não devolveu os autos. Em agosto desse ano eu fiz uma petição ao relator, pedindo a ele que mandasse requisitar os autos. Essa petição não foi sequer despachada porque os autos não estavam no STF.
Ora, existe uma lei que regula os casos de improbidade administrativa.
Um deles é deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei. Acontece que esta ação de improbidade administrativa é proposta unicamente pelo Ministério Público. Então, o que pode fazer a OAB? Representar à Procuradoria Geral da República dizendo que o seu chefe cometeu uma improbidade administrativa?

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