pensante

René Queiroz

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domingo, fevereiro 27, 2011

HA, não pode ser qualquer palavra!!!

Em junho do ano passado, Luiz Tatit, em entrevista para a Brasileiros, comentou a gravação do CD Sopa de Concha (Biscoito Fino). Assinado por Geraldo Leite e os amigos do Rumo, o disco surgiu de uma pesquisa realizada por Geraldo entre 2006 e 2007 nas coleções dos estudiosos Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão, disponibilizadas pelo Instituto Moreira Salles. Por uma total incompatibilidade de agendas, o Grupo Rumo não pôde se reunir ou sequer pensar em criar os arranjos. Todos os componentes originais compareceram, mas limitaram-se a gravar as vozes sobre os arranjos de Swami Jr. que, no baixo e violão de 7 cordas, liderou uma superbanda formada por Milton Mori, no cavaquinho e bandolim, Guilherme Kastrup e Douglas Alonso, nas percussões, e a participação de músicos como Mário Manga, André Mehmari, Toninho Ferragutti, Nailor Proveta, Popó, Mané Silveira, Tiquinho, Ubaldo, Nahor Gomes, Fábio Tagliaferri, Valdir Ferreira e Júnior Galante. O disco foi lançado em três shows realizados no SESC Vila Mariana paulistano para plateias lotadas que assistiram embevecidas à execução de 13 das 15 joias raríssimas garimpadas por Geraldo. O Grupo Rumo completo cantou acompanhado por Swami Jr. à frente de um grupo com alguns dos instrumentistas do disco - Milton Mori, por exemplo, foi substituído por Rodrigo Campos - e, para alegria geral, a banda executou sozinha no palco uma dezena de seus sucessos. Delírio, meu!
Formado por alunos da USP em 1974, em volta de estudos sobre a canção conduzidos por Luiz Tatit - hoje Titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas daquela universidade -, o Grupo Rumo estreou em disco com dois lançamentos simultâneos cinco anos mais tarde. Era formado por Luiz, Geraldo, Ná Ozzetti, Hélio Ziskind, Paulo Tatit, Pedro Mourão, Akira Ueno, Gal Oppido, Zecarlos Ribeiro e Ciça Tuccori, os mesmos que se apresentaram no SESC no mês passado - excetuando-se Ciça, já falecida. Os dois discos definiram o trabalho. Enquanto o álbum Rumo apresentava composições norteadas pelas pesquisas de Tatit sobre entonação, o que faz do texto musical (letra) algo único que só sobrevive grudado na música, na maioria das vezes, o outro disco Rumo aos Antigos, pode ser considerado o germe de Sopa de Concha. Exatamente como Geraldo fez agora, Tatit & cia. revirou arquivos, no sentido literal naqueles tempos pré-internet, em busca de raridades compostas por Sinhô, Noel e Lamartine. E o grupo aplicou seu estilo delicado.  O Grupo Rumo formou, ao lado de Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque (futuro Premê) e de Itamar Assumpção, a vanguarda do movimento de música independente que surgiu de forma espontânea em volta do Teatro Lira Paulistana. Os quatro chegaram a realizar alguns shows no Teatro Bandeirantes, onde Elis Regina encenou seu Falso Brilhante, hoje ocupado por uma igreja marqueteira. A temporada, batizada Vertigem, marcou a reunião dos quatro e, sintomaticamente, o fim do movimento. Afinal, eles eram independentes. Até entre si. Vanguarda Paulista é um nome criado pela imprensa. Com o tempo, o grupo lançou Diletantismo (1983), Caprichoso (1986), o infantil Quero Passear (1988), a coletânea O Sumo do Rumo (1989), Rumo ao Vivo (1991) e o DVD Rumo Show 2004 e teve dois outros componentes, Fábio Tagliaferro, músico dos mais requisitados, e Ricardo Breim, fundador da escola Espaço Musical. Todos seguiram seus respectivos rumos: Luiz assumiu a carreira solo que tocou com o magistério; Hélio e Paulo dedicaram-se à música infantil, o primeiro entre outros trabalhos e o segundo com o selo Palavra Cantada; Pedro e Akira estão atrás da escola musical Domus; Gal é um fotógrafo renomado; Geraldo trabalha com comunicação; e Zecarlos com arquitetura. A Ná é a Ná.
As músicas executadas pelo Rumo original no show de Sopa de Concha são um perfeito exemplo da excelência do grupo. As composições individuais e as parcerias desde sempre foram dotadas de arranjos colaborativos de muita imaginação. São atemporais e se adequam à perfeição, ao espírito aparentemente anárquico das músicas. Você assiste à apresentação sorrindo, não raro chorando, dada a inventividade sonora. Em 1986, Luiz apresentou Release uma canção narrando a trajetória do grupo que foi saudado como novo quando surgiu e que seria saudado como novo quando voltasse a se reunir décadas mais tarde. Profético.
Delírio, meu!
Essa é pra acabar.

Kant e a Primavera Árabe


A máxima de Kant, de que para sermos moralmente corretos não devemos tratar o homem com meio e, sim, como um fim em si mesmo, é sempre atual. Mas, não raro, às vezes ela é compreendida com tropeções. Afinal, todos os dias somos meios para alguma coisa. Sou filósofo e, como tal, escrevo livros; e meus livros são meios para que alguém obtenha algum tipo de conhecimento. Então, eu sou um meio. Isso é ruim? Não! Não posso considerar isso algo ruim, é claro. Mas, não é sobre isso que Kant está colocando sua máxima. Sua máxima é sobre o valor do bípede-sem-penas. Ou seja, enquanto alguém que se põe no mundo oferecendo coisas eu posso, é claro, ser aproveitado, ser um meio, mas eu não deveria ser reduzido a este homem que se põe no mundo oferecendo coisas. Eu teria um valor exclusivamente dado pela minha condição humana, a de ser um especial bípede-sem-penas. E, nessa circunstância, não sou meio para nada, sou um fim. Quem me tratar como homem e exclusivamente como um meio estará degradando a minha dignidade e, não podendo universalizar tal conduta sem tornar todo o conjunto dos bípedes-sem-penas também indigno, então, estará se pondo de maneira incorreta no seu tratamento de toda a humanidade.
É isso que Kant diz. Até aí, não deveríamos ficar ranzinzas com Kant. Há implicações dessa máxima que faz sua ética se tornar uma ética do dever, talvez endurecida, incapaz de ceder a uma outra nossa máxima, a da lei do amor, que nos leva a proteger os mais fracos e, entre eles, primeiro os nossos amigos etc.  Mas, talvez possamos olhar para Kant sem essas implicações, focalizando o quanto sua ética tem a ver com a política liberal que vinha se construindo em seu tempo. Aquela política que, antes dele, foi estabelecida por John Locke. A política de preservar a individualidade, os direitos individuais, especialmente a liberdade individual e a dignidade humana. Kant deu expressão filosófica a isso que, em Locke, ficou antes no campo da filosofia política que propriamente numa metafísica.
Gosto de Kant quando o leio dessa minha maneira. Pois, então, sua voz soa como uma alerta contra os que cultivam a ideologia da humildade, exatamente aquela ideologia denunciada por Nietzsche como sendo fruto de uma terrível corrosão moral. Estranho? Estou associando Kant a algo que foi aproveitado positivamente por Nietzsche, um de seus mais ferrenhos críticos? Sim! E eu explico.
Nietzsche viu no liberalismo um elemento da modernidade e, como tal, mais um dado da decadência. O liberalismo viria, no limite, favorecer os mais fracos, pois seria uma política de alimento da vida em rebanho – da moral do rebanho. Eu prefiro ver o liberalismo como uma doutrina que, associada ao lema de Kant de não valorar o bípede-sem-penas como um meio, lhe dá condições de se por como alguém que não deve abrir mão de uma dignidade nuclear e que, portanto, não tem de se esconder diante dos que vivem por aí com uma maldita frase em punho, a saber, devemos colocar na fogueira os “egos inflados”. Sei perfeitamente que os que denunciam “egos inflados” são os que pregam a ideologia da humildade, pessoas que Nietzsche não titubearia em chamar de vermes rastejantes – os que, não conseguindo eles mesmos se afirmarem, querem ver os outros no mesmo limbo que eles.
Em parte, Kant dá condições a cada um de nós de dizer o seguinte: “não vou ter vergonha de me afirmar como indivíduo”. “Vou fazer meu Orkut, meu Facebook, vou dizer o que gosto e o que não gosto; vou colocar o que acho que sou para valer. Ao menos para o círculo dos meus amigos, serei um indivíduo pleno, uma estrela – um pop star entre os meus.”  Esse movimento atual de tirar fotos de si mesmo e de se mostrar, de querer se colocar no mundo e ver seus gostos pessoais respeitados, é algo que devemos ao liberalismo. Em grande parte, a Locke, mas, em termos filosóficos mais profundos, a Kant. É exatamente aí que entra a idéia que, agora, cria a Primavera Árabe: os jovens de classe média e os jovens mais pobres querem viver os gostos da liberdade individual e do consumo do Ocidente. Querem se afirmar como indivíduos. E nisso, as redes sociais fazem o seu papel. O modo de vida ocidental os atrai como atraiu os dos países comunistas, gerando as revoluções de 1989 que fizeram, no final, desaparecer a URSS.
É claro que isso tudo que ocorre no mundo árabe pode ser aproveitado por grupos radicais religiosos. Mas, num primeiro momento, o anseio por liberdade no estilo ocidental é o que movimenta os jovens árabes a se colocarem contra os regimes em que vivem, repúblicas autoritárias e monarquias absolutistas ou similares.
É interessante notar que esse anseio por liberdade individual aparece quando, na sociedade, a questão da valorização do indivíduo já começa a importar. A Primavera Árabe, que segue em seu curso, começou porque um jovem ateou fogo ao seu corpo (a exemplo da Primavera de Praga) em protesto à opressão governamental ao que seria sua liberdade individual enquanto comerciante. Um ato assim, no passado, se ocorresse, poderia não levar a nada. Mas ele ocorreu quando a consciência desse jovem estava em consonância com a de toda a sociedade, ou seja, uma consciência preenchida pela idéia radical de que a liberdade individual vale tudo. Sem ela, não vale a pena nem mesmo a vida. Quando uma sociedade decide pensar assim, ela está funcionando em termos mais ou menos kantianos. O homem não é um meio, ele tem um fim em si mesmo. Se esse fim não é respeitado, então, o próprio homem não existe. Que vá ao fogo! Que vá ao fogo, afirmando a existência individual a partir de sua auto-negação.
Kant acreditava que esse anseio por liberdade era algo presente na revolução de seus dias, que ele acompanha pelos jornais – a Revolução Francesa. Os jovens árabes, hoje, relativamente ocidentalizados pela Internet, parecem estar nessa linha vista por Kant (e reiterada por Hegel em termos do caminho do Espírito): o homem anseia por liberdade. Tendo liberdade individual, ele se faz digno como alguém que tem valor em si mesmo. Então, a ética pode se definir a partir não mais do abaixar a cabeça, não mais da ideologia da humildade, não mais da posição do rebanho. Cada um pode ser alguém. Pode ser um mártir para começar a revolta, para que todos possam ser tão importantes quanto o mártir, após a revolta.
Tenho esperança que o mundo árabe encontre sua maneira de se integrar na democracia moderna, ainda que a reconstruindo segundo seus parâmetros, sem que seja necessário invocar a intervenção externa, como a que Bush fez no Iraque para “levar a democracia”. É uma esperança de filósofo, como aquela que encheu o peito de Kant quando ele, nas manhãs de Königsberg, lia os passos dados pelos revolucionários na França. Passos estes que, pouco tempo antes, haviam sido dados na América.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

sábado, fevereiro 26, 2011

Nem Capitalismo, nem Socialismo!!!

Apesar dos abalos continuados no Iêmen e no pequeno Bahrein, o epicentro do terremoto revolucionário agora está na Líbia. Depois de derrubar ditaduras na Tunísia e no Egito, países fronteiriços a oeste e leste, a terceira peça do dominó parece ser mesmo o estado “socialista e popular de massas”, comandado por Muammar al-Gaddafi há 41 anos.

O desdobramento da revolução árabe contesta narrativas apressadas. Alguns analistas vêem como fator causador do movimento a aliança entre as elites dirigentes e o bloco EUA-Israel. Culpam o pacto neoliberal em vigor há três décadas, entre governos servis e interesses do capital internacional. As pessoas revoltaram-se contra os regimes tunisiano e egípcio porque perceberam não passar de instrumentos a serviço do mercado global e suas usinas de desigualdade e injustiça. A insatisfação das massas diante do capitalismo e do americanismo contrastava com a dócil subserviência dos dirigentes. Esse contraste acabou por minar a legitimidade dos ditadores Zine Ben Ali e Hosni Mubarak, que sucumbiram aos primeiros fogos.

Daí a expectativa desses analistas, que a revolução tivesse por progressão solapar os governos mais pró-ocidente da Arábia Saudita, da Argélia, do Marrocos. Mas não esperavam, — pelo menos não agora e com essa fúria, — a Líbia.

Embora um dos maiores países do continente, a população líbia se espreme numa delgada faixa de praias, palmeiras e figueiras, entre o Mediterrâneo e a imensidão do sertão saariano. Conta 6,4 milhões de cidadãos, pouco mais da metade da vizinha Tunísia, cuja área é 11 vezes menor. A capital Trípoli, no oeste do país, tem o porte de uma metrópole média como Porto Alegre. Benghazi, a segunda cidade e pólo da região leste, ombreia com a litorânea Santos.

Apesar de os líbios se originarem, na maioria, de etnias não-árabes, como a berbere, podem ser considerados um povo culturalmente árabe. 80% têm como primeiro idioma o árabe e 97% confessam o islamismo sunita.

A Líbia ocupa o 53º posto no ranking de IDH (2010), entre o Uruguai (51º) e o México (56º), melhor que o Brasil (73º), e muito à frente da Tunísia (84º) e o Egito (105º). Sua receita vem das reservas de petróleo no deserto. A Líbia responde pela 17ª produção mundial (2008), um pouco menos que Iraque, Brasil e Venezuela. Muito, levando em conta a pequena população para distribuir os dividendos.

Desde 1969, vige na Líbia um estado socialista. Depois de um dos mais insólitos golpes de estado da história, o então capitão Muammar al-Gaddafi, com apenas 27 anos, assumiu o poder. Extinguiu a monarquia, instituiu comitês municipais e o Congresso Geral do Povo, expurgou o fundamentalismo islâmico, fez reformas de base, comandou o desenvolvimento de um país que, até então, era uma colcha de elementos tribais e coloniais. Na Líbia popular-socialista, os trabalhadores são chamados de “parceiros” do estado, e não funcionários.

Gaddafi sintetizou a sua doutrina, uma mistura de democracia direta, igualitarismo e economia planejada, no Livro Verde. Espécie de manual de uso para a política líbia, foi publicado em 1975, 11 anos depois do mais célebre Pequeno Livro Vermelho, de Mao.

O organismo estatal de comitês e assembléias converge, como um funil, na liderança carismática de Gaddafi. Um autocrata nos moldes clássicos: sábio, paternal, soberano, que espalha cartazes gigantes nas ruas planas e seus edifícios com terraços ajardinados. Outorgando a dogmática do Livro Verde e manejando o mito do inimigo externo (“o imperialismo”), o regime bloqueou a formação de grupos opositores, sustando qualquer canal para o dissenso.

Com a repressão, e diferentemente do Egito e da Tunísia, não se organizaram movimentos de matiz religioso. Tampouco grupos de esquerda, haja vista que o próprio estado monopoliza esse espectro ideológico. A dialética foi usada, portanto, para sedimentar o monólogo do poder: ou se é socialista junto do regime, ou se é pró-americano e pró-Israel, logo, inimigo do povo.

Na política externa, Gaddafi construiu a reputação com um virulento discurso antiamericano e pró-Palestina. Alinhou-se ao socialismo real da URSS e aos aiatolás do Irã. Patrocinou o IRA, o ETA e a Fatah de Abu Nidal, pródiga em atentados aeronáuticos. Gaddafi apoiou Abu Nidal, na linha da rejeição da existência do estado de Israel. Apoiou-o também a título de “retaliação”, ante os bombardeios norte-americanos a Trípoli e Benghazi, determinados por Ronald Reagan, em 1986 (bombas atingiram sua casa, matando a filha do ditador, de 15 meses).

Nas últimas décadas, as mudanças no modo de produção capitalista diminuíram os lucros da indústria do petróleo, relativamente à geração global de riquezas. A incapacidade de multiplicar novas dinâmicas produtivas e disseminar renda moldou uma geração inteira de jovens precarizados. Hoje, 50% da população têm menos de 25 anos e a desocupação produtiva da juventude é vasta. Assim, por um lado, a renda per capita líbia está na 56ª posição no mundo; e por outro, 30% de sua população vivem abaixo da “linha da pobreza”, segundo a ONU. Agrava a situação a desigualdade regional no eixo oeste-leste. Enquanto Trípoli aglutina a elite econômica, ligada à família de Gaddafi e ao creme da burocracia estatal, em Benghazi se amplia um bolsão de pobreza.

A nova conjuntura forçou Gaddafi a mudar de estratégia. Nos últimos 10 anos, deixou de ser o cachorro louco para assumir o status de pop star. Espalhafatoso e anedótico, encheu-se de grifes e faz-se rodear por beldades: o protótipo do “ditador pós-moderno”. É sintomática a sua intimidade com o premiê italiano Silvio Berlusconi.

Na década de 2000, Gaddafi fez as pazes com a Europa e os EUA, anunciou a desistência de fabricar armas nucleares, expulsou os militantes ligados a Abu Nidal, indenizou as vítimas dos atentados da Fatah na década de 1980, recebeu a visita de Condelezza Rice, aderiu ao slogan da “guerra ao terror”, discursou na ONU, pôs o filho Saif al-Gaddafi pra estudar filosofia política em Londres, onde obteve seu doutorado, e personificou nele um projeto de abertura política (que, todavia, nunca foi além da promessa).

Tudo isso rendeu ao ditador a admissão no club imperial. Caíram as sanções da ONU. Grandes empresas passaram a operar em solo líbio, inclusive multinacionais com sede no Brasil: Petrobrás, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez. Agora, todas pagam caro pela aposta num regime antidemocrático.

Gaddafi tornou-se mais um representante do socialismo do século 21. Déspota ilustrado que, se por um lado fazia o jogo do neoliberalismo, por outro reforçava o eixo “contra-hegemônico”, junto de Irã, Venezuela, Cuba e, com alguma licença poética, o Brasil (cuja política externa sumamente ambígua aproveitou ao máximo as tensões para fazer bons negócios e abrir caminho às empresas nativas).

Mas então veio 2011, ano da revolução árabe, e os líbios se contagiaram do ímpeto de mudança. Começando pelos pobres mais excluídos do leste, com foco na cidade de Benghazi, em duas semanas o tumulto se alastrou por todo o país, reunindo tribos tuaregues, jovens precários, pequenos grupos religiosos, trabalhadores e desempregados.

O estado líbio tenta, desesperadamente, interromper as redes e mídias que precipitaram a revolução. Derrubou a internet e a telefonia celular, proibiu a cobertura pela imprensa, embaralhou eletronicamente os sinais de transmissão. Nada disso surtiu efeito, e o tumulto só se aprofundou nos últimos dias.

Defrontado com uma nova verdade, de que o Livro Verde nada fala, o ditador mostrou a face mais antidemocrática. O discurso socialista unitário expôs a sua crueza: uma ditadura burocrática, um capitalismo de estado, um consenso fechado e autoritário, surdo à autoorganização popular e às demandas por trabalho livre e partilha da renda.

No Egito, no auge dos protestos, o exército não interveio, escusando-se que não poderia investir contra o próprio povo. Na república “popular” da Líbia, distintamente, esse discurso é impossível, porque o povo é o estado. Nessa operação paradoxal, uma multidão revoltada se torna inimiga do povo. Logo, as forças armadas devem reprimi-la com todos os meios.

Como Gaddafi reage?

Impõe a paz cartaginesa, ultima ratio do estado. Usa os petrodólares para contratar mercenários do Níger, do Sudão, da Serra Leoa, e monta grupos de extermínio. Daí a ordem dos bombardeios contra civis em Benghazi. A história dá voltas: eis atavismo dos bombardeios ordenados por Reagan em 1986, contra Trípoli. Recapitula ainda a repressão fascista contra líbios pelo marechal-do-ar e governador colonial Ítalo Balbo, na década de 1930. A Itália de Mussolini também usava a força aérea para conter o movimento de resistência popular (dica: o filme O Leão do Deserto, de 1981 , sobre a guerrilha anticolonial líbia, com Anthony Quinn no papel de Omar Mukhtar).

Enquanto isso, o filho e sucessor Saif Gaddafi, supostamente responsável pela Glasnost, aparece na televisão estatal em tom de confrontação irrestrita e sacrificial, “até o último homem”. Estudou em centros acadêmicos de excelência para vociferar discursos à maneira de Hitler? A transmissão do pronunciamento foi recepcionada às sapatadas, enquanto monumentos do Livro Verde eram despedaçados pela fúria dos insurgentes.

Como muitos servidores, civis ou fardados, simplesmente não compram esse discurso simplório do poder, a deserção vem em massa. Embaixadores demitem-se, guardas de fronteira abandonam os postos, unidades militares amotinam-se, pilotos desertam levando consigo as aeronaves. O sistema colapsa.

Os acontecimentos na Líbia mostram como a revolução árabe corre em diagonal pela dicotomia imperialismo x anti-imperialismo. Por mais que a ditadura tenha se aproximado da ordem imperial, ainda era pedra no sapato do establishment. Não deixou de ser considerado um garoto-problema, no nível de Ahmadinejad e Chávez.

Se as revoltas embutissem um nacionalismo pan-árabe, antiamericano ou antissemita, não faria sentido derrubar o último herdeiro do nasserismo, propugnador de um estado forte para lutar contra a opressão imperialista. Pelo menos, não antes de varrer a monarquia absolutista saudita, até agora incólume face à onda revolucionária.

O contágio tão premente da Líbia, terceira ditadura escorraçada pelos cabelos, mostra que suas causas vão muito além da dualidade capitalismo x socialismo, mercado x estado. As “ditaduras de mercado” foram demolidas tanto quanto a “ditadura de estado”. Em ambos os casos, uns poucos beneficiados exploravam os muitos, na mesma medida em que a participação política era sistematicamente bloqueada. O essencial, o mecanismo de exclusão, a desmobilização política, funcionava de um jeito ou de outro.

Com a revolução, outra vez o dique se rompeu e o medo mudou de lado, extravasando um novo mundo, desejante de compartilhamento e produtividade. A proliferação de afetos e desejos é intensiva. Ou seja, efetua-se não apenas por contiguidade (juntar-se a certo discurso ou grupo preexistentes), mas numa mutação interna de percepção, numa dinâmica de autovalorização (criar a sua verdade, formar o seu grupo).

A força da revolução também está em sua imprevisibilidade. Dinâmicas intensivas podem produzir novos focos em lugares distantes. Regimes até pouco tempo firmes como rocha ruíram como castelos de cartas. O ímpeto multitudinário ameaça contagiar países antidemocráticos do norte ao sul da África, do Magreb à Europa Mediterrânea, do Irã teocrático à China socialista.

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