pensante

René Queiroz

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domingo, março 18, 2012

O 'desenvolvimentismo de esquerda'

No Brasil, a relação entre a esquerda e o desenvolvimentismo nunca foi simples nem linear. Sobretudo, depois do golpe militar de 1937, e do Estado Novo de Getúlio Vargas, que foi autoritário e anticomunista, mas foi também responsável pelos primeiros passos do "desenvolvimentismo militar e conservador", que se manteve dominante, dentro do Estado brasileiro, até 1985. Neste contexto, não é de estranhar que a esquerda em geral, e os comunistas em particular, só tenham mudado sua posição crítica com relação ao desenvolvimentismo depois da morte de Vargas.
Não é fácil classificar ideias e hierarquizar instituições. Mas mesmo assim, é possível identificar pelo menos três instituições que tiveram um papel central, nos anos 50, na formulação das principais ideias e teses do chamado "desenvolvimentismo de esquerda". Em primeiro lugar, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que apoiou a eleição de JK, em 1955, mas só no seu V Congresso de 1958 conseguiu abandonar oficialmente a sua estratégia revolucionária e assumir uma nova estratégia democrática de aliança de classes, a favor da "revolução burguesa" e da industrialização brasileira, que passam a ser classificadas como condição prévia e indispensável de uma futura revolução socialista.
Em segundo lugar, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que foi criado em 1955, pelo governo Café Filho, e que reuniu um número expressivo e heterogêneo de intelectuais de esquerda que foram capazes de liderar uma ampla mobilização da intelectualidade, da juventude e de amplos setores profissionais e tecnocráticos em torno do seu projeto nacional-desenvolvimentista para o Brasil.
Hoje, essa corrente do pensamento recuou e dedica-se cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas
Por fim, desde 1949, a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) produziu ideias, informações e projetos que influenciaram decisivamente o pensamento da esquerda desenvolvimentista brasileira. Mas, apesar de sua importância para a esquerda, a Cepal nunca foi uma instituição de esquerda.
Do ponto de vista político prático, no início da década de 60, a "esquerda desenvolvimentista" ocupou um lugar importante na luta pelas "reformas de base", mas, ao mesmo tempo, se dividiu inteiramente, na discussão pública do Plano Trienal proposta pelo ministro Celso Furtado, em 1963. Mas, logo depois do golpe militar de 1964, a esquerda e o desenvolvimentismo voltaram a se divorciar, e sua distância aumentou depois que o regime militar retomou e aprofundou a estratégia desenvolvimentista do Estado Novo.
Três dias depois do golpe, o ISEB foi fechado; o PCB voltou à ilegalidade e a própria Cepal fez uma profunda autocrítica de suas antigas teses desenvolvimentistas. Mesmo assim, apesar dessas condições políticas e intelectuais adversas, formou-se na Universidade de Campinas, no final dos anos 60, um centro de estudos econômicos que foi capaz de renovar as ideias e as interpretações clássicas - marxistas e nacionalistas - do desenvolvimento capitalista brasileiro.
A "escola campineira" partiu da crítica da economia política da Cepal e de uma releitura da teoria marxista da revolução burguesa para postular a existência de várias trajetórias possíveis de desenvolvimento para um mesmo capitalismo nacional. Por isso, a escola campineira fez sua própria leitura e reinterpretação do caminho específico e tardio do capitalismo brasileiro e dos seus ciclos econômicos. E se posicionou favoravelmente à uma política desenvolvimentista capaz de levar a cabo os processos inacabados de centralização financeira e industrialização pesada da economia brasileira.
Hoje, parece claro que a "época de ouro" da Escola de Campinas foi da década de 70 até a sua participação decisiva na formulação do Plano Cruzado, que fracassa em 1987. É verdade que logo depois do Cruzado, e durante a década de 90, a crise socialista e a avalanche neoliberal arquivaram todo e qualquer tipo de debate desenvolvimentista, independentemente do que passou em Campinas. Mas parece claro que a própria escola recuou, nesse período. E dedicou-se cada vez mais ao estudo de políticas setoriais e específicas, e para a formação cada vez mais rigorosa de economistas heterodoxos, e de quadros de governo.
Seja como for, a verdade é que, com raras exceções, depois do Plano Cruzado, a "escola campineira" perdeu sua capacidade de criação e inovação dos anos 70, e a maioria de suas ideias e intuições originárias acabaram se transformando em fórmulas escolásticas. Por isso, não é de estranhar que neste início do século XXI, quando o desenvolvimentismo e a escola campineira voltaram a ocupar um lugar de destaque no debate nacional, a sensação que fica da sua leitura é que o "desenvolvimentismo de esquerda" estreitou tanto o seu "horizonte utópico" que acabou se transformando numa ideologia tecnocrática, sem mais nenhuma capacidade de mobilização social. Como se a esquerda tivesse aprendido a navegar, mas ao mesmo tempo tivesse perdido a sua própria bússola.
José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ,

domingo, janeiro 22, 2012

Fukuyama ataca outra vez

Não consegui levar muito a sério a provocação de Francis Fukuyama quando retomou a tese de Hegel e decretou o fim da história. Era, supostamente, uma contradição em termos, já que adotava a técnica retórica da esquerda marxista ortodoxa para vaticinar nosso futuro político. Mas o pesquisador do Centro para a Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito da Universidade de Stanford, tempos depois, publicou um interessante livro sobre o conceito de confiança na construção da nações. Ainda aí, ficava evidente um pensamento xenófobo autocomplacente.
Recebi, na semana passada, um outro bom texto de Fukuyama, mais instigante que os outros, embora adotando o mesmo discurso definitivo e escatológico.
O texto é mais crítico (no sentido de se aprofundar no mérito do tema) e o título já revela uma visão mais geral, importante para esses dias em que se fala tanto da ascensão da classe média brasileira. Reproduzo algumas passagens:

O Futuro da História
Democracia Liberal pode sobreviver ao declínio da classe média?
(...) Há várias razões para essa falta de mobilização de esquerda, mas o principal deles é um fracasso no campo das idéias. (...)

(...) A democracia liberal é a ideologia padrão em torno de grande parte do mundo hoje, em parte porque ela responde a e é facilitada por certas estruturas socioeconômicas.

(...) o liberalismo não implica necessariamente em democracia. Os Whigs que apoiaram a solução constitucional de 1689 tenderam a ser os proprietários mais ricos da Inglaterra; o parlamento desse período representava menos de dez por cento de toda a população. Muitos liberais clássicos, incluindo Mill, eram altamente céticos em relação as virtudes da democracia: eles acreditavam que a educação política levaria à participação responsável.

(...) Marxistas primitivos acreditavam que iriam ganhar por pura força dos números: como a franquia foi ampliada no final do século XIX, os partidos, como do Trabalho do Reino Unido e social-democratas da Alemanha cresceu aos trancos e barrancos e ameaçou a hegemonia de ambos os conservadores e liberais tradicionais.

(...) alterações importantes estavam acontecendo em um nível social que minaram o cenário marxista. Primeiro, o padrão de vida real da classe operária industrial continuou subindo, até o ponto onde muitos trabalhadores ou os seus filhos foram capazes de se juntar à classe média. Segundo, o tamanho relativo da classe operária parou de crescer e realmente começou a declinar, sobretudo na segunda metade do século XX, quando os serviços começaram a deslocar de fabricação em que foram rotulados de "pós-industrial" economias. Finalmente, um novo grupo de pessoas pobres ou desfavorecidos surgiu abaixo da classe operária industrial - uma mistura heterogênea de minorias raciais e étnicas, imigrantes recentes, e os grupos socialmente excluídos, como mulheres, gays e deficientes.Como resultado dessas mudanças, na maioria das sociedades industrializadas, o velho trabalhador se tornou apenas mais um grupo de interesse nacional, usando o poder político dos sindicatos para proteger os ganhos duramente conquistados de uma época anterior.

(...) Muitas pessoas atualmente admiram o sistema chinês não apenas por seu histórico econômico, mas também porque pode fazer grandes decisões complexas rapidamente, em comparação com a paralisia política agonizante que atingiu tanto os Estados Unidos e na Europa no passado poucos anos. (...) Mas é improvável que este modelo se torne uma alternativa séria à democracia liberal em regiões fora da Ásia. Em primeiro lugar, o modelo é culturalmente específico: o governo chinês está construído em torno de uma longa tradição de recrutamento meritocrático, uma grande ênfase na educação e deferência à autoridade tecnocrata.

(...) Também não está claro se o modelo é sustentável. Nem o crescimento baseado nas exportações, nem a abordagem top-down à tomada de decisão vão continuar a render bons resultados sempre.

(...) Finalmente, a China enfrenta uma grande vulnerabilidade moral. O governo chinês não obriga seus funcionários a respeitar a dignidade fundamental de seus cidadãos. Toda semana, há novos protestos sobre ocupações de terras, crimes ambientais, corrupção ou grave por parte de alguns oficiais.

(...) Os marxistas não conseguirão atingir sua utopia comunista porque o capitalismo maduro gera sociedades de classe média, e não sociedades da classe trabalhadora. Mas e se o desenvolvimento de tecnologia e a globalização enfraquecem a classe média? Já há sinais abundantes de que tal fase de desenvolvimento já começou. A renda média nos Estados Unidos tem estado estagnada em termos reais desde 1970.
(... ) Os Estados Unidos tentaram uma forma altamente perigosa e ineficiente de redistribuição em relação à geração passada ao subsidiar hipotecas para famílias de baixa renda. Esta tendência, facilitada por uma inundação de liquidez de outros países, deu a muitos americanos comuns a ilusão de que seus padrões de vida estavam subindo de forma constante durante a última década. A este respeito, o estouro da bolha imobiliária em 2008-9 foi nada mais do que uma reversão cruel à esta lógica. Os americanos podem hoje adquirir celulares baratos, roupa barata, e Facebook, mas eles cada vez mais não podem pagar suas próprias casas, ou seguro de saúde, ou pensões quando se aposentam. Um fenômeno mais preocupante, identificado pelo capitalista de risco Peter Thiel e do economista Tyler Cowen, é que os benefícios das ondas mais recentes de inovação tecnológica criaram acúmulo desproporcional nas camadas sociais mais talentosos e bem-educados da sociedade. Esse fenômeno ajudou a fazer com que o enorme crescimento da desigualdade nos Estados Unidos em relação à geração passada. Em 1974, um por cento das famílias levou para casa nove por cento do PIB; até 2007, essa participação aumentou para 23,5 por cento.

(...) O outro fator minando renda da classe média nos países desenvolvidos é a globalização. Com a redução dos custos de transportes e comunicações e a entrada da força de trabalho global de centenas de milhões de novos trabalhadores nos países em desenvolvimento, as tarefas realizadas pela classe média de países desenvolvidos podem agora ser executadas muito mais barato em outro lugar. De acordo com um modelo econômico que prioriza a maximização da renda agregada, é inevitável que os trabalhos sejam terceirizados.

(...) O livre comércio tornou-se menos uma teoria do que uma ideologia: quando os membros do Congresso dos EUA tentaram retaliar com sanções comerciais a China por manter sua moeda desvalorizada, eles foram cobrados por sugerir protecionismo.

À ESQUERDA AUSENTE
(...) Uma das características mais intrigantes do mundo, no rescaldo da crise financeira é que, até agora, emergiu uma força de apelo popular encabeçada pela extrema-direita, não por forças de esquerda. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Tea Party acalentam uma crença profundamente enraizada na igualdade de oportunidades e menos na igualdade de resultados. Mas a razão mais profunda para a ausência de uma esquerda popular é de ordem intelectual. Há várias décadas ninguém à esquerda tem sido capaz de articular, em primeiro lugar, uma análise coerente do que acontece com a estrutura das sociedades avançadas. Também não conseguem articular uma agenda realista que tem alguma esperança de proteger a sociedade.
As principais tendências do pensamento de esquerda das duas últimas gerações foram, francamente desastrosas tanto como marco conceitual, quanto como ferramentas para a mobilização. O marxismo morreu há muitos anos, e os poucos crentes estão prontos para lares de idosos. O acadêmico de esquerda foi substituído pelo pós-modernismo, o multiculturalismo, o feminismo, a teoria crítica, e uma série de outros fragmentos de tendências intelectuais que são mais culturais do que econômicos.
Rudá Ricci

segunda-feira, dezembro 12, 2011

"A morte de Deus" e o Natal sem religião

O poema de Machado de Assis em que ele pergunta se somos nós que mudamos ou se o Natal, parece anteceder a uma questão hoje corrente: a irreligiosidade da sociedade contemporânea. Émile Zola - que foi um dos primeiros críticos a elogiar os pintores impressionistas - achou de chamá-los de "realistas": eles, de fato, romperam uma tradição do cristianismo, de pintarem o ideal, como seriam as cenas religiosas. Mesmo quando retratavam alguém, não raro, um Rubens, um Delacroix ou mesmo um Ingres, trataram de fazê-lo, tendo como pano de fundo, digamos, uma cena idealizada, ou antes, um fundo nenhum. Foi o que fez Charles Dickens. Em seu famoso conto de Natal ("Christmas Carol"), tratou de pôr fantasmas na mente culpada do empresário que maltrata seu empregado, a partir da descrição de um literal pesadelo. O espectro, que arrasta correntes pela casa, e que o persegue no meio da noite, é claramente o demônio de sua consciência. Em seu poema, Machado de Assis não fala da questão do consumo que, em seu tempo, era muito precário em comparação com o que se vê hoje em dia. Mas ao detectar uma transformação ("Mudaria o Natal ou mudei eu"?), o escritor projeta a resposta que o mundo deu no futuro: o Natal, em si, já não é uma festa religiosa. Tudo indica que o que mudou foi o Natal.

Talvez a questão resida, de novo, no Papai Noel, um ícone de mentira, que sabemos ser de mentira, e que, por isso mesmo, não passa de um ícore. Na verdade, o personagem não tem nada de religioso: ele atravessa os ares com seu trenó, deixa presentes às crianças, mas não reivindica qualquer ligação com o além. Não é o Cristo da Manjedoura que o envia. Quando muito, talvez, sugira, pelas cores, a Coca-Cola: foi com o refrigerante que o Papai Noel apareceu na forma que tem hoje. O mais é a mistura: os sinos tocam em Belém "para o nosso bem", etc e tal -mas os personagens da Manjedoura parecem resolutamente secundários, coadjuvantes quase. E para os chamados "crentes" - que na atualidade constituem mais de um terço dos religiosos do país- o Presépio sequer existe. Assim também nas representações públicas. No máximo, temos a parafernália das luzes que se enrolam nas árvores, ou que despencam dos edifícios como um espetáculo feérico - mas que parece ter mais a ver com o neon da publicidade do que com as cenas consagradas pela tradição - aquela que se estreita numa gruta, com o Menino, a Virgem, os pastores vindos ao longe - anjos luminosos, uma estrela guia, e as músicas ressoando desde a estratosfera. 

Quando Nietszche disse que Deus estava morto, a reação alcançou todos os setores das religiões; a grita geral atingiu vários níveis e o próprio Nietszche foi anatemizado. Sua constatação, de que as religiões perdiam seus elos com a totalidade dos homens, a começar pela sua posição no Estado, nunca foi contestada pelos fatos. E o alarido que se seguiu a sua conclusão, fez muita gente contabilizar, não só os milagre - como os de Fátima, de Lourdes e outros -, mas todo um elenco de fatos extraordinários, os quais, entretanto, nem de longe parece terem tido o condão de ressuscitar Deus. 

Evidentemente, existem os religiosos: o Papa ainda reza a Missa do Galo, os crentes em suas denominação cada vez mais numerosas (a contar pelo número de pastores "empreendedoristas"), continuam a erguer seus braços na saudação a Cristo Jesus e em seus "aleluias". Algumas igrejas católicas esplendem em cores e luzes. Além do mais, há o islamismo. Dizer que Maomé já não tem Deus para ser seu último profeta, parece desconsiderar uma religião que cresceu desmesuradamente nos últimos anos, a ponto de os islâmicos serem, no mundo atual, em números, uma comunidade muito maior que a cristã. De fato, há aspectos de guerra religiosa na resposta que muitos muçulmanos dão às bombas dos EUA e da Otan, que negam, em princípio, a morte de Deus. No entanto, pode-se objetar que, ainda assim, soa inclusive para muitos seguidores do Profeta, quase uma regressão conceber a organização das sociedades em Estados Religiosos. No próprio Irã, aliás, há quem dê como como em dias contados, a manutenção da predominância dos clérigos na condução do Estado. Lá, também Alá estaria morto. 

A questão, contudo, não parece simples; e não é. Há anos, um religioso escreveu um livro sobre a arte sacra do nosso tempo. Defendia que ela existiria, a despeito da irreligiosidade desenfreada que paradoxalmente se seguiu à Segunda Guerra. Referia-se ao catolicismo e nomeava alguns artistas contemporâneos. Olivier Messiaen que morreu não faz muito, foi, realmente, um compositor que sempre se postou como católico. Escreveu obras textualmente, "para Jesus" e guardou-se de que sua fé era inquebrantável, o que não deixou de ser reafirmado até sua morte. Georges Rouault, pintor, um pouco mais velho que Messiaen, francês como ele, fez uma obra quase que inteiramente religiosa. Françoise Gilot, ex-mulher de Picasso, autora de um livro sobre o pintor, refere-se a Rouault como um artista, eminentemente, religioso. O próprio escritor inglês Graham Greene, morto há uns vintes anos, expôs o problema religioso no âmbito das questões existenciais prioritárias do nosso tempo. Mas, pelo fato de ter colocado a questão, justamente como "um problema", não parece ter esmorecido a questão concreta de que, com ou sem "o problema", Deus estaria, de fato, morto.

Pode-se, certamente, ler de muitas maneiras a afirmação ("aforismo") de Nietzsche. A um homem convicto de sua fé - e há um sem número deles, inclusive entre grandes intelectuais e cientistas - a consideração seria ociosa, até contraditória. Teria de se a avaliar a questão com as devidas reservas: José Saramago, um decidido agnóstico, não imputou a Deus o "grande mal do mundo"? Como considerá-lo morto, se a cada homem-bomba no Iraque ou no Afeganistão, reacende-se a questão do martírio, que só se concebe na crença de uma fé inquebrantável? Realmente, é assim. Mas se torna cada vez mais difícil associar a Natal ao nascimento de Cristo. Ou melhor: existe muito pouco, na "maior festa da Cristandade" que conduza à conclusão de o Natal ser realmente uma festa cristã. 

Claro, alguém dirá que é próprio do capitalismo não estreitar comemorações na religião. Complicado, realmente, vender certos produtos com as menções a Deus. Geladeiras e máquinas de lavar roupa, com as bênçãos do Manjedoura, são difíceis de engolir. Os religiosos que o digam. 

Há as medalhinhas católicas e os dízimos protestantes, sem dúvida: todos são produtos vendidos ou comprados "em nome de Deus". Os pagadores de promessa, que se reúnem em Aparecida, aumentam sempre, talvez não na mesma proporção de tempos atrás, mas são numeroso; só que, em todas as manifestações, o que nos identifica já não é a totalidade do ser religioso socialmente, senão a especifidade de o sermos, no âmbito de nossas respectivas igrejas e templos. 

Parece ser, enfim, inelutável entre os homens, a existência de um sentimento religioso difuso. Mas já Deus é um traço subjetivo, que não se expõe na última análise das músicas, cantadas nos templos, que só têm de verdadeiramente religioso a invocação direta a Deus. Canta-se Deus em forma de rock, de música de alto consumo, mas justamente por ser também Deus um objeto de consumo. Ou seja, parece que Deus prescinde de uma música especial, de comportamentos que distingam os religiosos dos consumidores. Somos crentes para invocarmos Deus, mas não para nos alijarmos dos outros como uma característica especial. 

Durante as perseguições religiosas na Roma antiga, a marca do cristão era uma espécie de divisor de águas: não havia a "mercadoria Deus". Deve ser por Papai Noel mostrar-se tão importante, que se prescindem as ginásticas para não ofendermos ninguém, ao não invocarmos Deus justamente naquela que seria a marca da "maior festa da Cristandade"? 

A pensar, certamente.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

sábado, outubro 29, 2011

A depravação da América

Foi-se o tempo em que a ética protestante definia o caráter dos Estados Unidos. Ela foi usada como fator responsável pelo sucesso do capitalismo na Europa do Norte e na América, pelos sociólogos, mas a ética protestante e o capitalismo são incompatíveis, e o capitalismo, em última análise, faz com que a ética protestante seja abandonada.

Há um novo ethos que emergiu, e as elites governamentais não o entendem. Trata-se do etos da “grande oportunidade”, do “prêmio”, da “próxima grande ideia”. A marcha lenta e deliberada em direção ao sucesso é hoje uma condenação do destino. Junto à próxima grande ideia comercial está o novo modelo do "sonho americano". Tudo o que importa é o dinheiro. Dada essa atitude, poucos na América expressam preocupações morais. A riqueza é só o que se tem em vista; vale inclusive nos destruir para alcançá-la. E se não chegamos lá ainda, certamente em breve chegaremos. 

Eu suspeito que a maior parte das pessoas gostaria de acreditar que sociedades, não importa as bases de suas origens, tornam-se melhores com o tempo. Infelizmente a história desmente essa noção; frequentemente as sociedades se tornam piores com o tempo. Os Estados Unidos da América não é exceção. O país não foi benigno em sua origem e agora declina, tornando-se uma região de depravação raramente superada pelas piores nações da história.

Embora seja impossível encontrar números que provem que a moralidade na América declinou, evidências cotidianas estão onde quer que se veja. Quase todo mundo pode citar situações nas quais o bem estar das pessoas foi sacrificado pelo bem das instituições públicas ou privadas, mas parece impossível citar um só exemplo de instituição pública ou privada que tenha sido sacrificada em nome do povo. 

Se a moralidade tem a ver com o modo como as pessoas são tratadas, pode-se perguntar legitimamente onde a moralidade desempenha um papel no que está se passando nos EUA? A resposta parece ser: “Em lugar nenhum!” Então, o que tem aconteceu nos EUA para se ter a atual epidemia de afirmações de que a moralidade na América colapsou? 

Bem, a cultura mudou drasticamente nos últimos cinquenta anos. Foi isso o que aconteceu. Houve um tempo em que a "América", o "caráter americano", era definido em termos do que se chamava de Ética Protestante. O sociólogo Max Weber atribuiu o sucesso do capitalismo a isso. Infelizmente, Max foi negligente; ele estava errado, completamente errado. O capitalismo e a ética protestante são inconsistentes entre si. Nenhum dos dois pode ser responsável pelo outro.

A ética protestante (ou puritana) está baseada na noção de que o trabalho duro e a ascese são duas consequências importantes para ser eleito pela graça da cristandade. Se uma pessoa trabalha duro e é frugal, ele ou ela é considerado como digno de ser salvo. Esses atributos benéficos, acreditava-se, fizeram dos estadunidenses o povo mais trabalhador do que os de quaisquer outras sociedades (mesmo que as sociedades protestantes europeias fossem consideradas parecidas e as católicas do sul da Europa fossem consideradas preguiçosas). 

Alguns de nós afirmam agora que estamos testemunhando o declínio e a queda da ética protestante nas sociedades ocidentais. Como a ética protestante tem uma raiz religiosa, o declínio é frequentemente atribuído a um crescimento do secularismo. Mas isto seria mais facilmente verificável na Europa do que na América, onde o fundamentalismo protestante ainda tem muitos seguidores. Então deve haver alguma outra explicação para o declínio. Mesmo que o crescimento do secularismo tenha levado muita gente a dizer que ele destruiu os valores religiosos juntamente aos valores morais que a religião ensina, há uma outra explicação.

No século XVII, a economia colonial da América era agrária. Trabalho duro e ascese combinam perfeitamente com essa economia. Mas a América não é mais agrária. A economia dos EUA hoje é definida como capitalismo industrial. Economias agrárias raramente produzem mais do que é consumido, mas economias industriais o fazem diariamente. Assim, para se manter a economia industrial funcionando, o consumo deve não apenas ser contínuo, como continuamente crescente.

Eu duvido que haja um leitor que não tenha escutado que 70% da economia dos EUA resulta do consumo. Mas 70% de um é 0,7, ou de dois é 1,4, de três, 2,1, etc. À medida que economia cresce de um a dois pontos do PIB, o consumo deve crescer de 0,7 para 1,4 pontos. Mas o aumento crescente do consumo não é compatível com a ascese. Uma economia industrial requer gente para gastar e gastar, enquanto a ascese requer gente para economizar e economizar. A economia americana destruiu a ética protestante e as perspectivas religiosas nas quais foi fundada. O consumo conspícuo substituiu o trabalho duro e a poupança.

No seu A Riqueza das Nações, Adam Smith afirma que o capitalismo beneficia a todos, desde que cada um aja em benefício dos outros. Agora estão nos dizendo que “economizar mais e cortar gastos pode ser um bom plano para lidar com a recessão. Mas se todo mundo proceder assim isso só vai tornar as coisas piores....aquilo de que a economia mais precisa é de consumidores gastando livremente”. A grande recessão atingiu Adam Smith na sua cabeça, mas o economista admitiria isso. “Um ambiente em que todos e cada um quer economizar não pode levar ao crescimento. A produção necessita ser vendida e para isso você precisa de consumidores”.

Poupar é (presumivelmente) bom para indivíduos, mas ruim para a economia, a qual requer gasto contínuo crescente. Se um economista tivesse dito isso na minha frente, eu teria lhe dito que isso significa claramente que há algo fundamentalmente errado com a natureza da economia, que isso significa que a economia não existe para prover as necessidades das pessoas, mas que as pessoas existem apenas para satisfazer as necessidades da economia. Embora não pareça isso, uma economia assim escraviza o povo a quem diz servir. Então, de fato, o capitalismo industrial perpetrou a escravidão; ele tem reescravizado aqueles que um dia emancipou.

Quando o consumo substituiu a poupança na psique americana, o resto de moralidade afundou junto na depravação. A necessidade de vender requer marketing, o que nada mais é que a mentira das mentiras. Afinal de contas, toda empresa é fundada no que disse o livro de Edward L. Bernays, de 1928: Propaganda. A cultura americana tem sido inundada por um tsunami de mentiras. O marketing se tornou a atividade predominante da cultura. Ninguém pode se isolar disso. É uma coisa seguida por pessoas de negócios, políticos e pela mídia. Ninguém pode ter certeza de estarem lhe contando a verdade a respeito de alguém. Nenhum código moral pode sobreviver numa cultura de desonestidade, e de resto, ninguém pode!

Tendo subvertido a ética protestante, a economia destruiu toda ética que a América um dia promoveu. O país tornou-se uma sociedade sem um etos, uma sociedade sem propósito humano. Os americanos se tornaram cordeiros sacrificáveis para o bem das máquinas. Então, um novo etos emergiu do caos, um etos que a elite governamental desconhece completamente.

Diz-se frequentemente que Washington perdeu o contato com as pessoas que governa, que não entende mais seu próprio povo ou como sua cultura comum funciona. Washington e a elite do país não entendem isso, mas a cultura não valoriza mais o certo sobre o errado ou o trabalho duro e a ascese sobre a preguiça e a extravagância. Hoje os americanos estão buscando a “grande oportunidade”, o “prêmio”, a “próxima grande ideia”. O Sonho Americano foi hoje reduzido ao “acertar em cheio!”. A longa e deliberada estrada para o sucesso é uma condenação. Vejam American Idol, The X-Factor e America’s Got Talent e testemunhe a horda que se apresenta para os auditórios. Essas pessoas, em sua maior parte, não trabalharam duro em nada na vida. Contem o número de pessoas que regularmente apostam na loteria. Esse tipo de aposta não requer trabalho algum. Tudo o que essas pessoas querem é acertar em cheio. E quem é nosso homem de negócios mais exaltado? O empreendedor!

Empreendedores são, na sua maior parte, fogo de palha, mesmo que haja exceções notáveis. O problema com o empreendedorismo, no entanto, é a alta conta em que passou a ser tomado. Mas o único valor ligado a ele é a quantidade de dinheiro que os empreendedores têm feito. Raramente ouvimos alguma coisa a respeito do modo nefasto como esse dinheiro foi feito. Bill Gates e Mark Zuckerberg, por exemplo, dificilmente representam imagens de pessoas com moralidade exemplar, mas na economia sem escrúpulos morais, ninguém se importa; tudo o que importa é o dinheiro. 

Dada essa atitude, por que alguém, nessa sociedade, expressaria preocupações morais? Poucos na América o fazem. Assim, enquanto a elite americana fala na necessidade de produzir força de trabalho sustentável para as necessidades de sua indústria, as pessoas não querem nada disso. 

A elite frequentemente lastima a falência do sistema educacional americano e tem tentado melhorá-lo sem sucesso, por várias décadas. Mas se alguém presta atenção no atual estado de coisas na América, vê que a maior parte dos empreendedores de sucesso são pessoas que abandonaram faculdades. Como se pode convencer a juventude de que a educação universitária é um empreendimento que vale a pena? Assim como Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zuckerberg mostraram, aprender a desenhar um software não requer graduação universitária. Nem ganhar na loteria ou vencer o American Idol. Fazer parte da Liga Nacional de Futebol pode requerer algum tempo na universidade, mas não a graduação. Todo o empreendedorismo requer uma nova ideia mercantil. 

Entretenimento e esportes, loterias e programas de jogos e disputas, produtos de consumo de que as pessoas não tiveram necessidade por milhões de anos são agora as coisas que formam a cultura americana. Mas não são coisas, são lixo; não podem formar a base de uma sociedade humana estável e próspera. Esta é uma cultura governada meramente por um atributo: a riqueza, bem ou mal havida!

A capacidade humana de autoengano é sem limites. Os estadunidenses vêm se enganando com a crença de que a riqueza agregada, a soma total de riquezas, em vez de como ela é distribuída, dá certo. Não importa como foi obtida ou o que foi feito para se obter tal riqueza. A riqueza agregada é a única coisa que se tem em vista; é algo pelo que vale à pena destruir a nós mesmos. E mesmo que não o tenhamos alcançado ainda, em breve certamente o conseguiremos. 

A história descreve muitas nações que se tornaram depravadas. Nenhuma delas jamais se reformou. Nenhum garoto bonito pode ser convocado para desfazer a catástrofe do Toque de Midas. O dinheiro, afinal de contas, não é uma coisa de que os humanos precisem para sobreviver, e se o dinheiro não é usado para produzir e distribuir as coisas necessárias, a sobrevivência humana é impossível, não importa o quanto de riqueza seja agregada ou acumulada. 
John Kozy - Global Research

(*) John Kozy é professor aposentado de filosofia e lógica que escreve sobre assuntos econômicos, sociais e políticos. Depois de ter servido na Guerra da Coréia, passou 20 anos como professor universitário e outros 20 trabalhando como escritor. Publicou um livro de lógica formal, artigo acadêmicos. Sua página pessoal é http://www.jkozy.com onde pode ser contatado.

Tradução: Katarina Peixoto

segunda-feira, outubro 03, 2011

Parece que ele está certo!

Lobão:  Cantor, compositor, músico, escritor e apresentador de televisão. Foi baterista do Luis Melodia, da Marina Lima, fundou a Blitz e inventou a expressão “cicatriz no cerebelo”. Entre otras cositas más.
“MPB, essa sigla já é uma merda. Ela é carregada de tantos estigmas. Porque é um mistério. O que é MPB? Quem pode ser enquadrado em MPB? Porque surgiu como uma sigla nos anos 60 como música uni­versitária de protesto, e acabou se tornando uma sigla que abarcou conceitualmente, mas não geograficamente, a música brasileira. É muito elitista. Eles procuram uma genealogia, ‘quem vai ser o novo’... Eu acho isso um fascismo.Tem um outro Noel Rosa? Pra que num novo Noel Rosa? Tem um novo Jimi Hendrix? Não tem. Um novo Bob Dylan? Claro que não. Pô, você acha que vai ter um novo Lobão? Não vai ter. É uma idiotice. Agora, eu fico meio grilado com a inteligência brasileira porque ela não permite que as pessoas legais mesmo sejam se­quer questionadas. Por exemplo, essa nova MPB. Pô, tem o Cascadura, tem os Vespas Mandarinas, o Turbo Trio, tem uma porrada de coisa que não tá inserida nisso que eu considero que é importante. Principalmente numa situação em que o artista hoje em dia tem que fazer tantas concessões pra existir que ele não vai ser nada. A tendência é que ele não vai ser nada. Mesmo tendo a maior coragem do mundo, o cara não tem condição de florescer hoje. Eu vejo isso por pessoas sensacionais que eu mesmo quis lançar e que eu sinto que são condena­das. Uma cara talentoso de vinte anos está condenado no Brasil, condenado a não ser nada.
O Cachorro Grande, por exemplo, eu adoro eles. São meus amigos. É o melhor show de rock ‘n’ roll do Brasil. E é muito triste dizer isso, mas eles tão conde­nados também. A carreira deles na indústria fonográfica parece ser downgrade, e não por culpa deles, porque eles são bons pra caralho, mas porque neguinho não sabe ouvir esses caras.
Quando você tem uma audiência que está despencando no seu nível de qualidade auditiva, não vai ter ninguém bom lá na frente. Porque aquilo vai representar o que é a audiência, e a audiência é uma merda. O Brasil é um arraial agrobrega. Nunca foi tão ruim como é agora. Então pra quem tem um pouco de honestidade e um pouco de talento, a pior coisa é estar no Brasil atualmente.Você tem que ser puto, inofensivo e cínico. E sem talento, ainda por cima. O Brasil é uma monotonia. Ou você tem o agrobrega ou você tem a Ivete Sangalo. Nada mais existe. E isso é muito aterrador. Esse Restart, o Cine, isso sempre existiu. Não é rock, é boy band. É uma coisa fabricada pra um público que ainda não menstruou. Agora, o Luan Santana é mais grave, porque vem aquela coisa da tarja ‘universitária’. Você pensa só, com o nível de educação péssimo, com todos os ENEMs sendo reprovados, e você tem o ‘forró universitário’, o ‘sertanejo universitário’, e tudo da pior qualidade. As pessoas não entenderam que esse é um sintoma muito sério, cara, de alguma coisa que está muito errada. A gente está num país que tá morto, cara. A nossa cultura tá morta.
Você deve ter percebido nos últimos anos esse ufanismo MPB, essa divas da MPB, mas não teve um artista que vingou. Não teve um artista que virou um Chico Buarque. Porque não tem. Porque o Chico Buarque já era ruim, e as pessoas não entendem que o Chico Buarque era deficiente, ele pensa errado, ele escreve mal. Ele é uma merda. E as pessoas acham ele um gênio. A mesma coisa você aplica ao Caetano e ao Chico, que tem momentos um pouco melhores, muito poucos, mas eu não entendo como as pessoas achar que aquilo é o nosso orgulho, a nossa cara, a nossa representatividade. A gente só vai criar vergonha na cara quando se olhar no espelho e ‘ih, que merda’. Aí, pode ser que a gente pare de aplaudir o pôr do sol, pare com a micareta, A gente não vai mudar nunca. A gente é fadado a ser um país de sombra, um país medíocre, dos subúrbios do terror.
As pessoas fazem uma sociedade classe C, e você acaba virando classe C. Eu fui pra Londres entre­vistar o Sting há cerca de um ano, tudo muito chique. Aí fui lá num restaurante e o cara gostou de mim, sentou e descobriu ‘ah, você é do Brasil? Peraí’. Levantou e foi lá botar uma música. Ivete Sangalo, cara...” 

revista NOIZE setembro 2011

segunda-feira, setembro 26, 2011

Uma semana de setembro

É quase certo que a semana que se encerrou ontem, sábado, tenha sido decisiva para a História deste século que se iniciou há dez anos, com os fatos misteriosos de Nova Iorque. A ONU, que não tem sido mais do que um auditório, espécie de ágora mundial, mas sem o poder político de que dispunham as praças de Atenas, ouviu quatro discursos importantes. Dois deles em nome da paz, do futuro, da lucidez e dois outros que ecoaram como serôdios. Dilma e Abbas, em nome dos que não aceitam mais essa divisão geopolítica do mundo; Netanyahu e Obama, constrangidos portavozes de um tempo moralmente morto. A assembléia geral estava separada em dois lados definidos, ainda que assimétricos.


A presidente do Brasil falava em nome das novas realidades, como a da emancipação das mulheres – pela primeira vez, na crônica das Nações Unidas, uma voz feminina abriu os debates anuais – e a impetuosa emersão de povos milenarmente oprimidos como agentes ativos da História. Mahmoud Abbas, embora em nome de uma pequena nação representou todos os povos oprimidos ao longo dos tempos. Por mais lhe neguem esse direito, a Palestina é  tão antiga que entre  suas fronteiras históricas nasceu um homem conhecido como Cristo.


O holocausto judaico, cometido pelos nazistas, e  que nos horroriza até hoje, durou poucos anos; o do povo palestino,  espoliado de direitos com a ocupação paulatina de suas terras, iniciada com o sionismo no fim do século 19, dura há pelo menos 63 anos, desde a criação, ex-abrupto, do Estado de Israel, em 1948. Recorde-se que a criação de um “lar nacional” para os judeus estava condicionada à sobrevivência, em segurança, do povo palestino em um estado independente. A voz de Dilma, mais comedida, posto que representando  nação de quase 200 milhões de pessoas no exercício de sua soberania política, teve a mesma transcendência histórica do apelo dramático de Abbas. A cambaleante comunidade internacional era chamada à sensatez política e à consciência ética. É duvidoso que ela corresponda a essa responsabilidade. Do outro lado, no discurso dissimulado e ameaçador de Netanyahu e na lengalenga constrangida de Obama, ouviram-se  os rugidos dos mísseis tomawaks e o remoto estrondo que destruiu as cidades de Hiroxima e Nagasáqui, em 1945. Enquanto Netanyahu balbuciava, sem nenhuma coerência, as expressões de paz, seus soldados matavam um manifestante palestino na Cisjordânia ocupada.


Os dois arrogantes senhores não falaram em nome dos homens; bradaram em nome das armas e dos grandes banqueiros sem pátria que, desde os Rotschild, mantêm a força contra a razão naquela região do mundo. Como muitos historiadores já apontaram, os judeus ricos, sob a liderança da poderosa família de financistas, decidiram acompanhar o ex-pangermanista Theodor Herzl, na idéia de criar um estado hebraico, a fim de se livrar da presença constrangedora dos judeus pobres na Inglaterra e na Europa Ocidental.


Na origem da sua independência, os Estados Unidos ouviram a constatação sensata de Tom Payne, de que contrariava o senso comum a dependência de um continente, como a América do Norte, a uma ilha, como a Grã Bretanha. O governo norte-americano é hoje refém de um estado diminuto, como Israel, representado em Washington pelos poderosos lobistas, capazes de influir sobre o Capitólio e a Casa Branca, contra as razões históricas da grande nação.


Ao apoiar, vigorosamente, o imediato reconhecimento, pelas Nações Unidas, da soberania do Estado Palestino, Dilma não falou apenas em nome dos países emergentes, solidários com o povo acossado e agredido,  cujas terras e águas são repartidas entre os invasores; falou em nome de princípios imemoriais do humanismo. Ela pôde dar autenticidade ao seu discurso com uma biografia singular, a de uma jovem que, na resistência contra um regime criado e nutrido ideologicamente pelos norte-americanos, foi prisioneira e torturada.


A presidente disse ao mundo que estamos, os brasileiros, trabalhando para que o Estado cumpra a sua razão de ser, ao reduzir as desigualdades sociais e ampliar o mercado interno, a fim de desenvolver, com  justiça, a economia nacional. Embora com a prudência da linguagem, exigida pelas circunstâncias solenes do encontro, o que Dilma disse aos grandes do mundo é que eles, no comando de seus estados, não agem em nome dos cidadãos que os elegeram, mas das grandes corporações econômicas e financeiras multinacionais, controladas por algumas dezenas de famílias do hemisfério norte. O resultado dessa distorção são as crises recorrentes do capitalismo contemporâneo, com o desemprego, o empobrecimento crescente das nações, a insegurança coletiva e o desespero dos mais pobres. E os mais pobres não se encontram hoje apenas nos países do antigo Terceiro Mundo, mas nas maiores e orgulhosas nações. As ruas de Londres e de Nova Iorque, de Nova Delhi e de São Paulo são caudais da mesma miséria. Daí a necessidade de que se mude o projeto de vida em nosso Planeta. Para isso é preciso que as novas nações participem efetivamente da construção do futuro do homem.


Outro ponto axial de seu discurso foi o da necessária e urgente reforma das Organização das  Nações Unidas, para que ela se restaure na credibilidade junto aos povos. Seu sistema decisório, construído na fase crucial da reacomodação do mundo, depois da tragédia da 2ª. Guerra Mundial, correspondeu a uma constelação circunstancial do poder, em que as maiores potências, possuidoras da bomba do juízo final,  assumiam a responsabilidade de garantir hipotética paz,  mediante o Conselho de Segurança. Contestado esse superpoder mundial pela consciência moral dos povos, desde o seu início, há quase duas décadas que se discute a sua ampliação democrática, mas sem qualquer conclusão efetiva. Dilma expressou a urgência de que isso ocorra, a fim de que o organismo possa ter a força da legitimidade política.


A paz, como a guerra, era, durante a Guerra Fria, um negócio a dois, e que só aos dois beneficiava. Sua disputa se fazia na periferia do sistema, a partir do conflito na Coréia, que inaugurou o sistema da divisão entre norte e sul, que se repetiria no Vietnã e em outros países.


Mais uma vez, no pacto Wojtyla-Reagan, a Igreja se somava ao dinheiro, para a aparente vitória do capitalismo, com a queda do muro de Berlim. Isso trouxe aos vitoriosos a ilusão de que a História chegara a seu fim, com a definitiva submissão dos pobres aos nascidos para mandar e usufruir de todos os benefícios da civilização. Como registramos, naqueles anos de Fernando Henrique, quando ele nos fez ajoelhar diante de Washington, os novos mestres do mundo se esqueceram de combinar com os adversários, como recomendou um filósofo mais atilado, o mestre Garrincha. A globalização, planejada para consolidar o condomínio dos países centrais, sob a hegemonia ianque, mediante a recolonização imperial, trouxe o efeito contrário, promoveu a unidade política dos países atingidos,  e se voltou contra seus criadores. Isso explica a emersão dos Brics.


Foi em nome do futuro, das novas e poderosas forças humanas que se organizam, que a presidente falou em Nova Iorque.

por Mauro Santayana

 

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